DROGAS = PROBLEMAS

DROGAS = PROBLEMAS
NÃO ENTRE NESSA

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Tudo está bem. - Contos eternos


                                                                        Tudo está bem


Lurdes Maria olhou mais uma vez para o relógio que parecia mover-se em câmera lenta. Dormir naquela noite estava fora de cogitação. E ela, que sempre foi dorminhoca, precisou lutar contra a vontade de tirar um cochilo.
Sua velha conhecida solidão, se fazia presente, mas desta vez era mais que bem vinda. Companhia era o que ela menos desejava.
Não, ela não faria nada por impulso, demorou meses consumindo-se em alternativas que não a satisfaziam, por isso optou pela saída que pensou ser a mais acertada para dar fim aquela vidinha estranha, hostil e absolutamente sem sentido.
Após esta decisão, deixou de se consumir sobre o certo ou o errado, e nem se permitiu estremecer á voz de sua consciência.  Finalmente estaria livre dos estragos de seus fracassos; fracassos que a princípio lhe pareciam saídas perfeitas.
Para amenizar a angustia da espera, abriu uma garrafa de vinho, serviu-se em uma taça de cristal e bebeu não tão lentamente quanto deveria.
Isso a fez relaxar.
Relaxada demais sentiu que uma modorra repentina a arrastava para o sono. Mas tinha consciência disso. Um caleidoscópio de imagens, quase de sonho, formou-se em sua mente; súbito estremeceu e percebeu que ainda estava acordada.
Receosa de ser vencida pelo torpor preparou um café forte.
O apartamento fedia fumo. Não era para menos, em menos de oito horas deu fim a um maço de cigarros.
Uma azia começou a incomodar. Cogitou comer algo, preferiu não arriscar, pois seu estômago revirava com a expectativa.
Ligou a televisão que não transmitia nada interessante, desligou. Ligou o som e colocou um cd do Pink Floyd. I wish you here, era a música ideal.
Toda sua história, que a seus olhos, era tão abominável quanto um espetáculo amador mal interpretado, estava prestes a fechar as cortinas.
Aguardou ansiosa, até que finalmente os ponteiros indicavam que já era de partir e acabar logo com aquilo.
Ajeitou a bolsa à tira colo, deu uma última olhada dentro do apartamento antes de apagar a luz da sala, trancou a porta e seguiu para garagem.
Desceu vagarosamente os três lances de escada até o térreo. Um leve sorriso se abriu em seus lábios quando avistou seu velho fusca, o amigo de todas as horas.
Lurdes Maria nunca foi mulher de ostentar. Se o fusca a levava e a trazia de todos os lugares, sem nunca lhe dar problemas, por que trocar de carro? Respondia sempre que os filhos sugeriam que ela merecia um meio de transporte mais confortável.
Conferiu o relógio. Quatro e meia da madrugada. Estava no horário.
Girou a chave, e como de costume seu companheiro não a deixou na mão. Precisou gastar um tempinho nas manobras, pois sem direção hidráulica, as rodas só se moviam mediante à força exercida no volante.
O frescor da noite a as ruas desertas deixariam aquele viagem extremamente prazerosa, não fosse o destino final.
A adrenalina que jorrava em suas veias era intensa e prazerosa. O ponteiro do velocímetro encostava no 110 quando ela sentiu o volante trepidar na estrada de terra esburacada. Rapidamente ergueu um pouco o pé do acelerador. Um acidente era tudo que ela não queria naquele momento.
Por um segundo imaginou estar sonhando, afinal toda sua existência não se mostrava mais real, do que as quimeras de suas fantasias, contudo rapidamente voltou à realidade e viu que seguia pela estrada escura. Desta vez nada alteraria seus planos funestos.
Ao olhar para o céu, notou que as últimas estrelas se apagavam à medida que ela se aproximava de seu destino. Temendo não chegar antes do nascer do sol, afundou o pé no acelerador novamente. Quando o velho fusquinha jogou a traseira de lado, ela precisou de força para não cair no barranco. Com o coração disparado e as mãos tremulas freou bruscamente. O carro morreu.
- Droga! – bradou esmurrando o volante.
Rapidamente girou a chave. O motor engasgou e não ligou. Girou a chave para trás, respirou fundo e tornou a tentar. Desta vez o carro pegou. Com mais cuidado e menos velocidade acelerou morro acima.
Já estou quase chegando, pensou ao fazer uma curva no alto do penhasco. Dirigiu mais alguns metros e, assim que avistou a grande pedra chata, estacionou bruscamente no meio da picada.
Eufórica e resoluta demais para pensar com clareza nas conseqüências de seu ato derradeiro, sentiu uma leve vertigem, mas assim que abriu a porta foi atingida pela brisa gelada da madrugada e imediatamente recompôs-se.
Deixou os faróis do carro ligado para enxergar melhor o caminho e seguiu lentamente até a grande pedra chata.
Já não era a primeira vez que Lurdes Maria se sentava à beira daquele precipício. Das vezes anteriores foi dissuadida pela covardia de tirar sua a vida, ou quem sabe, pela coragem de continuar lutando em busca do que acreditava ser sua felicidade. Porém, naquele dia, nada a faria mudar de opinião.
A visão de um futuro melhor havia sido apagada pelos últimos acontecimentos e ela não se sentia motivada a encarar um recomeço.  Resumindo em pouquíssimas palavras, já há algum tempo ela passou a sentir uma profunda aversão pelo mundo, pela vida e principalmente, por ela mesma. Acreditava que sua vida não passava de uma azarada soma de infortúnios. E em certo ponto, ela bem que tinha razão. Poucas pessoas conseguiriam suportar tudo que esta jovem senhora já suportou, entretanto a saída que ela buscava era a única que não tinha retorno.
Faltava apenas quatro dias para que Lurdes Maria completasse meio século de existência. Mas isso não tinha importância; ela não esperaria nem mais um dia para concluir seu intento.
Suspirou fundo. Olhou para o céu e constatou que uma teimosa estrela resistia brilhando. Aproximou-se do abismo, abaixou-se e sentou-se à beirada da pedra.
Seu plano era simples, rápido e indolor. Ter como derradeira visão de suas retinas o nascer do sol e depois saltar no vazio do precipício.
Ela chegou a pesquisar na internet como seriam seus derradeiros segundos de vida. A dúvida se sentiria muita dor ou se poderia não morrer no impacto preocupou-a, mas seria um azarado milagre se ela não morresse após despencar mais de cem metros em queda livre. Uma pitada de medo fez um calafrio percorrer sua coluna, afinal em matéria de azar ela era campeã.
Lurdes havia escolhido a grande pedra chata, por saber que o amanhecer visto daquele lugar era um espetáculo de tirar o fôlego.
Olhou para baixo e pensou que certamente a morte já lhe aguardava em meios as rochas. Um vento gelado fez seu corpo franzino estremecer novamente.
Súbito lembrou-se do bilhete que havia deixado estrategicamente posicionado sobre a mesa da sala. Dias atrás havia marcado um almoço com a filha, ciente que assim que a caçula desse por seu desaparecimento certamente arrombaria a porta do apartamento.
Será que deixei tudo bem explicado? – pensou.
Relembrou as palavras:
“Queridos filhos, sei que a princípio podem não entender os motivos que me levaram a tomar esta atitude. Infelizmente já não consigo mais continuar lutando, pra mim basta. Sei que com o tempo e o amadurecimento vocês irão me perdoar por desistir desta luta inglória que tem sido minha vida.
Talvez a dificuldade em aceitar minha decisão, seja por vocês me terem como mulher forte, fato que dissimulei com perfeição durante todos estes anos. Na verdade, suportei todas as mazelas de minha vida para provar a todos, que eu era uma mulher de fibra, nunca desmoronei diante das desgraças, jamais revelei minhas reais frustrações e talvez por este motivo consegui chegar até aqui, mas não dá mais.
Eu simplesmente não aguento mais!
Tenho plena consciência de que neste momento que estão lendo este bilhete sou a causadora da tristeza e desapontamento que tomam suas emoções, mas isso passa.  Podem ter certeza, tudo passa nesta vida.
Amo cada um de vocês e sei que a saudade será grande.”
Amor mamãe

Propositadamente disse muito, mas não disse nada. Afinal mesmo que minudenciasse seus motivos, ninguém entenderia. Um meio sorriso lhe veio aos lábios.
Será que sou sádica? – questionou-se.
Não sou sádica não, só não suporto mais viver assim. Respondeu pra si mesma. Continuar vivendo não tinha mais sentido, há tempos seu mais profundo anseio tornara-se o da destruição, deixar de existir tinha tomado conta de sua mente de tal maneira que diluiu por completo seu instinto de viver.
Lá estava ela pronta para tirar a própria vida e preocupada com o que os outros iriam pensar. Tudo bem que “os outros” eram seu filhos, frutos de suas entranhas. Pessoas incríveis. Julgava ela. Seus filhos nunca foram problema, muito pelo contrário, foi justamente pela existência destas três pessoas que ela havia desistido do suicídio das outras duas vezes.
 O tempo passou e as crianças tornaram-se adultos, casaram-se, tiveram filhos e estavam muito bem financeiramente, não precisavam mais dela. Certamente seriam reconfortados por seus pares e o luto pelo suicídio da mãe seria breve.
Resolvida em suas decisões expulsou da mente todos os pensamentos de remorso e até as boas lembranças focando-se no objetivo.
A luminosidade aumentava. Enfim assistiria o amanhecer e daria fim a todo aquele tormento.
Minutos depois um alaranjado intenso riscou o horizonte. Lá vinha ele, a única testemunha de sua insanidade.
O coração começou a bater mais forte, chegando a ficar descompassado; ela prendeu a respiração e mordeu os lábios.
O alaranjado ganhou um brilho mais intenso iluminando o azul escuro. Ele estava chegando. Lindo majestoso, cheio de poder e de vida.
Uma lágrima escapou de seus olhos umedecendo a face. Ela que já estava com os pés dependurados no vazio apoiou as mãos na pedra ao lado do corpo, a fim de dar impulso. Fechou os olhos, não queria ver o que estava prestes a fazer, enrijeceu os músculos dos bíceps e para seu pavor ouviu uma voz bem atrás de si:
- Que espetáculo!
O susto foi tanto que ela quase caiu no precipício.
Ao virar o pescoço para trás deparou-se com um homem em pé, de altura e peso normais; por outro lado, porém tinha uma estranha aparência. Sua pele era branca como a neve que se acumulava em cima dos telhados, os olhos azuis protuberantes e surpreendentemente luminosos, e o cabelo da cor de trigo por colher.
 Diante do silêncio da mulher ele perguntou:
- Posso me sentar ao seu lado?
De onde saiu este sujeito, perguntou-se aturdida ainda em silêncio.
- Posso? – tornou a perguntar.
- O que faz aqui? – perguntou ela com os olhos arregalados.
- Vim assistir o nascer do sol. – respondeu calmamente.
Ela ficou tão furiosa com a intromissão daquele estranho que lhe faltaram palavras.
- Quem cala consente. – disse ele, e sem constrangimento aproximou-se, apoiou a mão esquerda no ombro da mulher e sentou-se ao lado da aturdida Lurdes Maria. 
Posicionou-se exatamente como ela, nádegas na beira do abismo e os pés pendurados no vazio.
Eles se encararam.
Ela raivosa, e ele estranhamente feliz!
- Meu nome é Manuel. – apresentou-se estendendo a mão para Lurdes.
Ela não moveu nenhum músculo.
- Meu nome é Manuel. – tornou a dizer.
- Como você é desagradável, já sei que seu nome é Manuel. – bradou entre dentes.
- Desculpe. Só quis ser educado, mas já que não quer conversa vamos assistir o nascer do sol.
 Lurdes Maria ainda o encarava quando ele virou o rosto para o horizonte.
O sol já se mostrava pela metade e ela ainda o encarava respirando ruidosamente. Por um segundo teve vontade de empurrar aquele estranho, com cara de felicidade, abismo abaixo. De repente um sorriso brotou nos lábios do homem, ela estremeceu de raiva.
Temendo a ideia de ao invés de suicida tornar-se uma homicida, fechou os olhos, respirou fundo e também mirou o horizonte.
Meio minuto depois, sem conseguir se acalmar voltou-se para o estranho e perguntou:
- Você pretende ficar aqui por muito tempo?
Ele se voltou para ela e sem afetação respondeu:
- Não marquei nada para esta manhã.
Ela bufou e voltou-se para frente, ele ergueu os ombros indicando que não estava preocupado com absolutamente nada, e também voltou a contemplar o nascer do sol.
Dois completos estranhos, lado a lado, sentados à beira do abismo observando o sol desgrudar da linha do horizonte.
O silêncio só não era total, pois as aves começavam a sinfonia do amanhecer.
Sem saber exatamente como proceder, ela pensou em inúmeras possibilidades e decidiu que se talvez permanecesse calada o homem se sentiria constrangido e logo após assistir o nascer do sol partiria.
Aquele momento decisivo tornara-se um momento de espera.
Droga! Até minha morte tem que ser complicada, pensou enquanto aguardava impaciente.
Quando finalmente o sol afastou-se alguns centímetros do horizonte, Lurdes virou-se para o estranho e decretou:
- Pronto! O sol já nasceu. Você pode ir embora.
- Vou ficar mais um pouco. – respondeu ele ainda com aquele sorriso impróprio para ocasião.
Lurdes bufou e como criança emburrada disparou:
- Eu estava aqui primeiro e quero ficar sozinha.
- O penhasco é público, ou você comprou este lugar?
- Não! Eu não comprei este lugar. – respondeu exasperada – Mas quero ficar aqui sozinha. Entendeu?
- Um ótimo lugar para ficar sozinho é dentro da própria casa. – respondeu malcriado.
- Você não se importa por sua presença não estar agradando?
- Pra ser bem sincero. Não!
- Por favor, preciso ficar sozinha. – implorou pensando que caso mudasse sua estratégia, mostrando-se humilde e educada, poderia dissuadi-lo a permanecer no local.
- Pra fazer o que você vai fazer não precisa ficar sozinha.
- E o que você pensa que eu vou fazer? – perguntou ela assustada com aquela afirmação.
- Vai se suicidar.
- Quem disse isso?
Ele riu da cara de assombro estampada no rosto da mulher.
- Quem disse que eu vou me matar? – tornou a perguntar virando o corpo na direção do estranho que demonstrava saber bem mais do que deveria.
Manuel também se virou para Lurdes e propôs.
- Vamos, acabe logo com isso. Eu serei sua testemunha ocular.
Ela estava perplexa. Primeiro aquele estranho quase a mata de susto, aproximando-se sem fazer barulho, depois com uma felicidade imprópria se senta ao seu lado como se fosse um velho amigo, relata saber de suas intenções e por fim quer ser testemunha de sua decisão. Sem perceber, toda fúria que sentia transformou-se em dúvida e uma pontada de medo.
Se ele sabe que vou me matar, por que não tentou me desencorajar? Por que está com esta cara de felicidade? Será que é um sádico psicopata? Será que vai querer me empurrar? Questionava-se confusa.
Temendo ser assassinada, recuou alguns centímetros afastando-se de seu companheiro de precipício.
Manuel riu, só que desta vez uma breve gargalhada escapou de sua boca.
Lurdes tremeu.
- Tá com medo?
- Eu? Com medo de que? – perguntou com a voz tremula.
- Acho que você está com medo que eu lhe empurre abismo abaixo.
Como ele poderia saber o que ela estava pensando, questionou-se ainda mais confusa.
- Quem disse que estou com medo, ou que vim aqui para cá me suicidar?
- Sua expressão corporal, sua irritação e esta cara de autopiedade.
- Cara de autopiedade? Você é um louco.
- Louco? Quem não é louco neste mundo insano? Louco talvez, mas definitivamente não sou suicida.
- Eu não sou suicida!
- Ah não? E o que veio fazer aqui?
- O mesmo que você. Vim apreciar o amanhecer.
Ele a encarou meneou a cabeça e sem constrangimento afirmou:
- Você mente muito mal.
- Você é um grosso! Primeiro se senta ao meu lado sem ser convidado, depois diz que sou uma suicida e agora me acusa de mentirosa? Quem você pensa que é?
- Manuel. – disse estendendo a mão. – A sua disposição.
- Isso só pode ser uma brincadeira. – bufou irritada.
- Desistir da própria vida não é brincadeira. – respondeu sem o costumeiro sorriso nos lábios.
- Quem disse que eu desisti?
- Não seja hipócrita. Quando vai parar de mentir pra você mesma?
- Como ousa? – bradou ela furiosa.
Depois de um sorriso largo ele completou:
- Assuma suas decisões com coragem. Você não foi a primeira e não será a última a fugir da luta. Tem gente como você por todo canto.
Lurdes estava boquiaberta com a audácia do estranho. Isso não o afetou, muito pelo contrário, a reação de Lurdes só o encorajou mais.
- Há momentos na vida que o mundo vira de pernas para o ar. O certo se torna incerto, os sonhos se mostram pesadelos e o roteiro simplesmente empaca. Estacar no ponto onde a dor é mais aguda é uma forma de perpetuar aquilo que nos perpetua... Autopiedade...
- Autopiedade? – foi a única palavra que Lurdes conseguiu pronunciar.
                - Sim. Você vai se matar por estar cheia de peninha de você mesma! – ironizou- Ninguém morre de dor, mas alguns se matam por causa dela.
- Você não sabe nada da minha vida! – disparou.
- Esta sua decisão diz tudo que eu preciso saber. Você é uma fraca de espírito.
Lurdes inspirou, preparando-se para protestar.
- E o pior – continuou Manuel –É que nem isso você consegue assumir.
- Fraca de espírito? Você não tem a menor idéia de tudo que já passei. Não sabe nada do meu sofrimento, de minhas lutas e fracassos... – lágrimas escorriam dos olhos de Lurdes – Você não imagina o quanto eu tentei...
- Você não chegou nem aos cinqüenta anos e já vai desistir? Por que não espera mais uma semaninha?
O fôlego entrecortou e Lurdes estremeceu. Como assim? Ele falou em cinquenta anos e depois falou em uma semana. Será coincidência, ou ele sabe que na semana que vem farei aniversário? Questionou-se pra lá de intrigada.
- Como sabe que faço aniversário na semana que vem?
- Faz mesmo? Parabéns! – ele parou, ponderou alguns segundos e estalando os lábios num disc-disc completou – Parabéns não, minhas condolências. – desdenhou.
- Você é irônico mesmo, ou está tentando se passar por engraçado?
- A ironia não é minha. Ela é toda sua. Você decide se matar uma semana antes de seu aniversário e quer que eu diga o que?
- Fácil é julgar. – ela tentou se defender.
- Quem está julgando quem? A vida é sua, você faz dela o que quiser, mesmo que isso seja fugir da luta e dar fim em tudo.
- Estou desempregada. – tentou justificar-se.
- Foi despedida?
- Me demiti.
Lurdes esperava ouvir alguma crítica, algo para argumentar, mas Manuel se calou e simplesmente voltou-se para o horizonte. Dois minutos de silêncio e nada. Isso a incomodou tanto que ela voltou a falar.
- Fui injustiçada.
- É? Normal num mundo competitivo.
- Normal pra você. – rebateu aliviada por ter algo pra dizer. – Você não sabe o que é dedicar-se a uma empresa por longos anos e depois ser deixada de lado.
-Realmente não vivi esta experiência. Deve ser difícil ficar sem dinheiro pra sobreviver com dignidade.
- Dinheiro não é o problema.
- Não? – perguntou tentando mostrar-se surpreso.
                - Tenho outras fontes de renda.
- Então seu problema é só orgulho ferido?
- Orgulho ferido? – repetiu indignada.
- E não? Seu patrão não lhe deu o valor devido, você se demitiu e agora quer se matar pra deixá-lo com peso na consciência.
- De onde tirou esta ideia? Depois de ter-me dedicado tanto para empresa ver a filhinha do patrão assumir o cargo que por direito era meu, foi apenas a gota d’água. Você não sabe de nada.
- Sou todo ouvidos.
-Quem disse que eu quero falar de meus problemas com você?
- Por mim tudo bem. Se não quer falar não fale.
O silêncio voltou a imperar. Ela o encarou, porém ele não se alterou. Parecia mesmo deliciar-se com a leve brisa que soprava.
A irritadiça suicida confabulava com sua mente. Quem este sujeito pensa que é? Ele não sabe nada sobre minha dor. Ele nem imagina pelo que já passei...
A palavra sofrimento havia se tornado obsoleta em sua vida. Um amontoado de decepções, traições e dissabores tornou o sofrimento um mero chavão. Para Lurdes Maria a dor apenas existia como fato constante e natural em sua história. Ela nunca foi do tipo que ficava choramingando suas mazelas para outras pessoas, nunca desejou a piedade de ninguém, ao invés disso remoía sua dor diuturnamente. Mas, isso era problema seu e não importava naquele momento. O importante era esclarecer os fatos. Como sempre, ela desejou explicar seu ponto de vista e fazer aquele completo estranho entender que tudo não era tão simples como ele dizia. Afinal, só tomou aquela malfadada decisão por acreditar já ter encontrado o fundo do poço.
Ainda olhando para o rosto de Manoel viu que um largo sorriso abriu-se em seus lábios. Ela bufou. Ele gargalhou.
- Do que acha graça?
- De você. – respondeu ainda virado para o horizonte.
- Tenho cara de palhaça?
– Não. Você tem cara de quem não sabe o que quer da vida.
- Eu sei muito bem o que quero!
- Ah sabe é? – perguntou olhando-a com o rabo do olho.
- Sei sim. E você já sabe que horas vai embora?
- Ainda não decidi.
A irritação dela era tanta que sem perceber começou a chorar. Aquilo não poderia estar acontecendo. Nem ao menos morrer em paz ela conseguia. Súbito ele ergueu o braço e delicadamente bateu em suas costas dizendo:
- Está tudo bem, tudo vai acabar bem. Pode confiar.
- Tire as mãos de mim! – gritou em meio aos soluços que lhe apertavam a garganta. – Você estragou tudo.
- Tá tudo bem. – repetiu como se aquilo fosse um mantra.
- Pára de falar “tá tudo bem”.
Ele a encarou e mesmo sem dizer nada ela viu em sua fisionomia que ele dizia mentalmente: Tá tudo bem.
- Eu só queria morrer em paz. – choramingou ela desconsolada.
- Posso lhe garantir que este não é um tipo de morte em paz.
- O que sabe sobre morte?
- A lei da morte consiste em não haver permanecia entre todos os seres vivos. Algo natural quando acontece no momento certo. Já a lei da vida é persistir, insistir, sempre lutar mesmo que isso cause muita dor.
As palavras de Manuel geraram um turbilhão de emoções dentro de Lurdes, ela abriu a boca para esbravejar, mas desistiu.
Um gavião grasnou no céu. Manuel seguiu o voo rasante deslumbrado com a beleza do pássaro.
- Que maravilha! A vida é simplesmente incrível!
Cada atitude, cada palavra, cada gesto de Manuel fazia Lurdes tremer inconformada. 
- Sua vida pode ser incrível, mas a minha de incrível não tem nada.
Ele a encarou e apertou os lábios como quem iria falar, mas ao invés disso voltou-se novamente para o horizonte calado.
- Diga. – pediu ela.
- Pelo que vejo você está forte e saudável, também não detecto traços de desespero em sua face, então nenhuma grande desgraça se abateu sobre sua vida, isso só pode significar uma única coisa: Seu sofrimento tem origem no passado, isso é: Ele não passa de um hospedeiro do seu ego... – ele fez uma pausa e depois completou – Para ser feliz basta despejá-lo sem aviso prévio e sem prazo pra que ele arrume outra moradia.
- Simples assim? – ironizou ela.
- Sofrimento se alimenta de sofrimento, ele precisa de sua autorização para permanecer lhe atormentando.
- Eu não sofro porque quero. – disparou ela na defensiva.
- É claro que este padrão é inconsciente, mas se prestar bem atenção em sua vida verá que seu comportamento está programado para continuar sofrendo. Quando entender que o sofrimento não é um animal feroz que pode te destruir e sim um frágil fantasma que se dilui ao seu bel prazer, mudara completamente sua vida.
- Em suma, você está dizendo que o sofrimento não passa de ilusão.
- Sim. Exatamente isso.
Ela riu com sarcasmo e perguntou:
- Então eu olho para minha vida desgraçada e decreto que isso não passa de ilusão e fica tudo bem?
-Você tornou-se uma mulher amarga e infeliz por causa das situações que ocorreram em sua vida, o problema é que acredita veementemente que este ser infeliz é você. O medo inconsciente de perder esta identidade gera uma forte resistência a qualquer forma de não-identificação. Pessoas assim preferem perpetuar o sofrimento a mudar para uma nova experiência de vida.
- As coisas não são bem assim...
- Fatos inesperados podem ocorrer na vida de todos nós, - ele a interrompeu - o que muda é a forma como encaramos a situação. Deparar-se com uma injustiça machuca, eu sei, mas deixe que o peso da injustiça fique nas mãos de quem a cometeu. Impedir que ela se torne parte de sua vida cotidiana é a melhor solução para seguir em frente.  No mais... – ele se calou.
- No mais? – questionou ela curiosa.
- Não posso acabar a frase. – respondeu ele.
- Por que não pode?
- Porque você me pediu para não falar mais... Tudo vai ficar bem.
- É só isso que você sabe falar. Tá tudo bem. Tudo vai ficar bem...
- Mas tá tudo bem mesmo.
- Não, não tá tudo bem. Minha vida tá um caos, estou desempregada, já fui rica, perdi tudo, fui traída por um marido canalha, enviuvei do segundo marido, fui roubada, humilhada, perdi meus pais, vivo longe de meus filhos, estou envelhecendo, meu cabelo está caindo, minha pele enrugando e minha autoestima zero.
Ele se voltou para ela, aproximou-se um pouco e perguntou:
- Fora isso, está tudo bem. Não está?
Ela bufou irritada.
- Fora isso o que me sobrou?
- Tem absoluta certeza de que não sobrou nada de bom?
Ela pensou por alguns segundos.
- Meus filhos e meus netos, mas...
- Mas eles têm a vida deles e eu a minha. – ele a interrompeu falando palavra por palavra o que ela iria dizer.
Ela o encarou.
- A verdade é que você não se permite ser simplesmente feliz com o que tem. Precisa desesperadamente buscar esta dor miserável para continuar sendo a vítima.
- Como ousa falar da minha vida?
- A sua vida é sua, o seu destino está em suas mãos. Os acontecimentos que tanto te açoitam nada mais são que conseqüências das escolhas que você tomou. Isso significa que pode mudar toda sua história apenas deixando seus medos invisíveis de lado, e esta vergonha apavorante que sente por suas escolhas desastrosas, e a maldita culpa de nunca ter atingido as tais metas utópicas que você mesma decretou pra si.
- Fácil. – desdenhou enquanto enxugava o rosto com a manga da blusa.
- Hum, hum. Fácil assim. Sua sensibilidade excessiva corrobora para que sofra mais diante dos infortúnios de sua vida. Caso pondere com sinceridade verá que muitas vezes reagiu com exagero diante de fatos diminutos; levando tudo para lado pessoal.
- Eu não sou assim.
- Não? Pelo que me disse, seu patrão foi injusto colocando a própria filha num cargo que seria seu. Certo?
Ela assentiu com a cabeça e ele prosseguiu.
- Você tinha todo direito de ficar chateada, confrontar seu patrão e até pedir demissão, mas daí a ser esta a gota d’água para pôr fim a própria vida... – ele fez uma pausa e riu – Isso é entregar toda responsabilidade de sua vida nas mãos dos outros.
- Mas...
- Calma! – ele pediu interrompendo-a – O dono de uma empresa tem todo direito de contratar ou demitir quem bem entender quando bem entender. Se ele cometeu uma injustiça, você até poderia ficar magoada, porém quando decidiu levar esta mágoa como outro troféu de vida, você optou por destruir seu direito e dever de seguir em frente. Jogou no lixo sua paz de espírito e pegou a mágoa e guardou-a na sua caixinha de desgostos particulares; Um troféu à mais numa caixinha que já há muito tempo deve estar abarrotada de rancores. Se ao invés de ficar ruminando sua tristeza, pedisse demissão e partisse para outra, não tardaria a encontrar novos caminhos, novos amigos, novos horizontes. Você me entende?
Ela não sabia se ria ou se chorava daquela lição de vida e moral que levava daquele desconhecido. E mesmo com lágrimas pingando ela sorriu desconsertada.
Ele também sorriu e repetiu:
- Tá vendo. Tá tudo bem.
- Você é surdo ou louco? Você não me escutou? Minha vida está um caos!
 - Você sabe o que é caos?
- Minha vida é um caos.
- Você pensa que sua vida é um caos, mas você não sabe nada sobre o caos. Vou lhe dizer o que é caos. Caos é uma situação na qual você não pode mudar os acontecimentos, não há a quem recorrer ou algo a fazer a não ser assistir o que está por vir.
Ela já ia rebater quando ele ergueu a mão e pediu:
- Por favor.
Ela engoliu as palavras e ele imediatamente voltou a falar.
- Caos é o que se instaurou no Titanic depois que todos os botes salva-vidas já haviam partido. Ou o sentimento de quem estava no nonagésimo andar do Word Treide Center, logo acima de onde o avião colidiu. Enfim, caos é quando não há nada humanamente possível que você possa fazer para mudar os acontecimentos. Agora você diz viver um caos por estar desempregada, por ter sido traída e vítima do curso natural da vida, que nada mais é que enterrar os pais afastar-se dos filhos e envelhecer?
Lurdes que o encarava com curiosidade, ponderando aquelas palavras, assim que ele se calou disse:
- Da maneira que fala faz tudo parecer natural.
- A vida é natural mulher! – bradou com veemência - e esta naturalidade traz consigo nuances diversos. Alguns bons outros nem tanto, mas nada do que você me relatou é sinônimo de caos.  
Lurdes abaixou a cabeça e mirou o vazio do abismo. Ambos estavam em silêncio. O único som agora era o farfalhar das folhas nas árvores logo atrás e o canto de alguns sabiás.
É estranho, pensou ela, que estivesse ponderando algo que minutos atrás era fato consumado. Nos últimos dias ela jamais cogitou a possibilidade de que sua decisão fosse algo errado. Porem a presença daquele estranho lhe trazia tais pensamentos. E isso a estava confundindo tremendamente.
Ela admitia ser excessivamente sensível, reagia com exagero a fatos insignificantes e às vezes levava as coisas para o lado muito pessoal, mas ela sempre atribuía esta sua sensibilidade a tantas decepções. Vivia armada.
- Estou cansada de sofrer. Nada faz muito sentido. Você deve estar achando que eu sou uma covarde que desistiu da vida por nada, mas não é isso. Os motivos que me trouxeram até aqui são reais e muito perversos.
- Nesta sua busca de atenção e solidariedade você acrescenta uma boa pitada de dramaticidade, sabia? Não estou menosprezando seu sofrimento. Ninguém vive sem estar exposto ao sofrimento ou a perda. Acredito que os motivos que a trouxeram até aqui são muito fortes, no seu ponto de vista. Isso porque o instinto natural de sobrevivência acorda o ser egoísta que habita em cada um de nós; martelando que a dor que nos aflige é a pior. Uma dor de dente incomoda muito mais para quem a está sentindo, do que a dor da fome de todas as crianças na África. A traição de um marido canalha dói muito mais para a esposa traída, do que a dor causada pela infinidade de vidas perdidas em todas as guerras. E por vai.  Desejar por um fim em sua dor é natural pra você, mas já pensou em seus filhos? Como eles se sentirão ao saber que a mãe simplesmente desistiu e os abandonou?
- Eu não os abandonei.
- Caso conclua seu intento, você nada mais terá feito que os abandonar.
- Todo mundo morre. – rebateu ela automaticamente.
- Ainda bem que todo mundo morre, caso contrário haja terra para tanta gente. – ironizou. - Falando em filhos, você deixou um bilhete suicida?
- Não é da sua conta. – respondeu irritada.
- Espero que tenha indicado o local aonde iria se matar.
Lurdes repassou a carta mentalmente.  Não, ela não mencionou o local nem como faria sua passagem. Pensou mais um pouco e sem medo de errar disparou.
- Sempre vem gente aqui, alguém vai encontrar o meu carro e chamar a polícia.
- Tomara que seja alguém de boa índole, alguém que se importe, pois caso apareça algum gatuno, seu fusca vai para o desmanche enquanto seu corpo apodrece lá embaixo. – disse apontando para o abismo. - Coitados de seus filhos. Saberão que a mãe os abandonou, mas nem um corpo vão ter pra enterrar. – ponderou.
- Droga! – bradou ela batendo a mão cerrada na lateral do corpo.
- Tá tudo bem.
- Cala a boca!
- Opis. – murmurou chacoalhando os ombros enquanto engolia o riso.
- Pra você é tudo muito normal, fácil. Você não deve ligar pra nada mesmo. Tá ao lado de uma pessoa que vai tirar a própria vida e fica com este sorriso nos lábios. Você é sádico?
Agora sem o sorriso nos lábios Manuel voltou-se para Lurdes e perguntou:
- Diz a verdade, morrer por causa de uma injustiça no trabalho não é um motivo banal demais?
- Eu já disse que isso foi só a gota d’água. Vou completar cinquenta anos e jamais fui amada de verdade.
- Você casou-se quantas vezes?
- Duas.
- E os dois te traíram?
- Não.
- E você se separou dos dois.
- Não só do primeiro, o segundo faleceu ano passado. Na verdade digo que não fui traída por ele, mas vai saber...
- O que os olhos não vêem e os ouvidos não ouvem só pode ser fruto de sua imaginação, ou de sua necessidade de sofrer.
- Lá vem você.
- Você ouviu o que acabou de falar... Mas vai saber...
Ela abaixou os olhos envergonhada. Até poderia argumentar, mas no fundo sabia que ele tinha toda razão.
- Quanto tempo faz que se separou do primeiro marido?
- Dez anos.
- E esta traição ainda a incomoda?
- Fui muito humilhada, você não imagina o que tive que suportar por anos, só para manter o casamento.
- Você quer dizer que não era feliz, mesmo antes da traição?
- Acho que fomos felizes nos primeiros cinco anos, depois disso, o fato de eu arrumar um emprego e ganhar mais do ele fez tudo mudar. Do dia pra noite ele se tornou meu algoz. Tudo o que eu fazia passou a incomodá-lo tanto, que para superar este incômodo ele passou a me diminuir em tempo integral.
- Você disse que ele tornou-se seu algoz?
- Sim. – respondeu ela com firmeza.
- Ele era violento?
- Não!
- Isso significa que ele nunca usou de violência para permanecerem casados?
- Não. As agressões eram verbais e sempre quando estávamos sozinhos. Ele fazia o tipo de bom marido quando na presença de estranhos. Sua astucia era tamanha que muitas vezes quando eu retrucava as agressões verbais ele alegava que eu estava ficando louca, e que não tinha feito nada. 
- Então por que permaneceu casada?
- Porque ele era o meu marido, pai de meus filhos.
Ele riu.
- Você está dizendo que apesar de viver ao lado de um homem que não suportava vê-la progredir, que denegria sua imagem pessoal e tratava-a como um estorvo, você optou por permanecer casada pelo simples fato de dizer que estava casada?
- Assim você me coloca como errada.
- Não é uma questão de certo ou errado. É apenas lógica. Se alguém quer ser meu algoz e eu não estou disposto a ser sua “vítima”, coloco pra correr na primeira agressão verbal ou física, se este fosse o caso. Mas ao invés disso, você deu poder ao inimigo. E pior, ainda dá, pois depois disso tudo passou a perpetuar a dor mantendo-a viva com a repetição infinita dos abusos que sofreu. Mais ou menos como ficar voltando o filme inúmeras vezes só para chorar de novo. Isso é papel de vítima sabia?
- Eu não sou vítima.
- Só uma vítima tem um algoz.
- Você distorce os fatos.
- Não distorço nada só encaro os fatos de outro prisma.
Lurdes pensava naquela afirmação quando ele perguntou:
- E como ficou sabendo da traição?
- Ele me contou.
- E você o que fez?
- Disse que o perdoava, mas... – Lourdes aquietou-se parecendo pensar no que iria revelar.
- Mas? – repetiu ele tentando fazê-la acabar a frase.
- Mas ele me disse que não sabia se queria ficar comigo ou com ela.
- O que?
Lurdes abaixou a cabeça.
- E o que você fez?
- Eu disse que esperaria ele decidir, que o amava muito e que não queria perde-lo.
- Quantos anos vocês já estavam casados?
- Quinze.
- Então depois de quinze anos de casados, dos quais apenas cinco foi feliz, ele começou a te trair e você optou por esperar ele decidir o que faria da vida?
- Sim.
- E quantos anos mais ficaram casados?
- Muitos.
- Muitos quantos?
- Mais cinco.
- Então você dedicou mais cinco anos de sua vida numa relação falida?
- Hum, hum... – balbuciou ela pensativa.
Ele riu. Ela cerrou os dentes e antes mesmo de se pronunciar ele desculpou-se.
- Me desculpe se pareço insensível, é que as pessoas cavam uma cova com as próprias mãos e depois se desesperam por não conseguirem sair do buraco. Tudo isso é passado, eu sei, mas pense por um segundo como seria sua vida caso tivesse tomado as rédeas da situação logo no começo. Tudo teria sido muito diferente, concorda?
- Eu fiz o meu melhor. – tentou explicar-se.
- Tudo bem. O passado passou, mas no seu caso ele não foi embora por completo. Depois de todos estes anos, ainda se lembra vividamente que teve um marido mau-caráter, que lhe magoou e que lhe traiu, enfim, mesmo que não admita, ele ainda faz parte de sua caixinha de desgostos. Você se acostumou a viver enredada pelo sofrimento e não tem a menor idéia de como seria a vida sem isso.
- Fui casada com ele por vinte anos, como posso esquecer tudo que ele me fez.
- Como poderia esquecer tudo que você permitiu que ele fizesse com você, melhor dizendo.
- Está novamente afirmando que a culpa é minha? Eu o amava muito.
- Com certeza a culpa é sua! – afirmou ele. – Só você poderia por um fim as humilhações, desgostos e tudo mais. Mas almejando realizar o sonho utópico de ser a esposa que envelhece ao lado do cônjuge, cria filhos e depois embala netos, optou por suportar tudo. Ninguém suporta viver sendo humilhada, maltratada e denegrida por muito tempo sem sucumbir à loucura, por isso sua mente criou desculpas para todas as dores.
Ele riu pra ela com um sorriso largo e sem medo de errar afirmou:
- Você não o amava não. O que fez foi simplesmente decidir qual dor doeria menos. Entre não ter mais o marido que você idealizou a vida toda, e tê-lo mesmo que ele lhe magoasse muito, você escolheu a segunda opção. Só o que não sabia é que tudo na vida segue um curso determinado e que mediante a esta verdade chegaria a hora que a relação simplesmente findaria pelo curso natural da situação.
Ela o encarou pensativa.
- Quem optou pela separação?
- Eu.
- Tá vendo. Ele era tão pequeno, que nem dar fim ao casamento ele conseguiu. Menina você não perdeu nada. Você se livrou de um peso morto!
Pela primeira vez Lurdes riu naquela manhã.
- A traição foi apenas uma estratégia do universo pra te dar um “chega pra lá”.
- Universo? – perguntou ela encarando-o. Universo era a palavra que ela usava quando queria se referir a uma força superior. Isso porque já há algum tempo decidiu deixar esta conversa de Deus pra os espiritualistas.
Manuel a encarava quando, desviando completamente o foco da conversa, ela perguntou:
- Você não acredita em Deus?
- Olhe para o horizonte. – pediu ele apontando para o vale quilômetros à frente. -Quem você acha que fez todas estas maravilhas? As nuances de alaranjado e azul que colorem o céu, aquele rio que serpenteia a floresta sem fugir de seu curso, estes ipês amarelo salpicados entre a infinidade de tons de verde, neste mar de árvores? Ouça o canto dos pássaros, acha mesmo que tudo isso é obra do acaso?
Ela não respondeu, e ele voltou a falar:
- Evolução, energia, acidente, criação, sina, universo. Somos livres para nomear como bem entendermos o poder gerador de todas estas maravilhas, mas estas palavras são usadas para descrever uma única coisa. Deus!  Quando eu digo universo quero na verdade dizer Deus.
- Acredita ou não?
- Lógico que sim, a vida sem fé em um Ser Supremo é como um livro em branco que só serve mesmo para a fogueira.
Ela o encarou e ele disparou:
- E você acredita?
                - Sei lá! Esta história de Deus tem muitos paradoxos para ser verdade.
- Tipo?
- Os teólogos falam que Deus é amor, mas como um ser que ama pôde deixar que minha vida chegasse ao ponto que chegou?
- Por ser amor nos dá livre-arbítrio. Como já lhe disse, tudo que você está vivendo não é nada mais, nada menos que fruto de suas escolhas. No mais, sua vida não é tão ruim quanto você pinta, e mesmo assim você tem o livre- arbítrio para desistir. Deus não costuma interferir brutamente nas decisões de um ser humano. Mas...
- Mas?- questionou curiosa.
- Acredito que às vezes Ele não se importe em abrir o mar para mudar algo já decidido.
Lurdes sorriu debochadamente. Ela sempre teve um temperamento prático e resoluto, com isso rejeitava a teoria com a qual Manuel tentava explicar o inexplicável. Ela tinha sua própria maneira de encarar a vida. Não era descrente. Acreditava que a teoria de que o universo era fruto de uma mera explosão, banalizava demais a perfeição, consequentemente só algo com um poder supremo seria capaz de manter o equilíbrio da vida na terra, contudo já há algum tempo deixara de perder o sono com estes pensamentos, talvez por acreditar não ter discernimento suficiente para entender, ou quem sabe por pensar que se realmente existisse um deus,  ele não passava de um carrasco desumano.
- Tá tudo bem ai? – perguntou Manuel diante do silêncio de Lourdes.
- Não. Não tá tudo bem. Eu estou cheia de problemas...
- Quem não os tem? Problemas nada mais são que desafios. O que seria da vida sem desafios? Mas no seu caso, você parece somar a todos os seus problemas a sensação de injustiça. “Eu não merecia receber isso, eu não merecia passar por aquilo”. Enfim, quando juntamos aos problemas a sensação de injustiça o sofrimento é certo.
Lurdes ainda digeria aquelas palavras quando ele perguntou:
- Você não se acha injustiçada pela vida?
Sem pensar muito ela disparou:
- Muito.
- Tá ai! Todo seu sofrimento vem desta raiz de amargura. Não vou afirmar que não houve injustiça na sua existência, com certeza houve. Ninguém em sã consciência dirá que o sofrimento é justo, mas ele existe e é real. Ele faz parte da vida. É só enfrentar esta realidade sem se matar de sofrer.
- Se fosse tão fácil assim muitos não teriam desistido da vida.
- Pois é. – ele murmurou.
Um silêncio obtuso se fez por alguns minutos até Lurdes voltar a indagá-lo.
- Já que você tem solução pra tudo, qual seria o conselho que daria para alguém que desistiu?
- Primeiro aceitar o sofrimento como um fato natural da existência humana. Segundo, encarar a situação de frente e acreditar que nada é pra sempre, tudo muda.  Só é necessário um segundo para transformar toda uma existência. Sei que é triste constatar que ninguém se compadece da sua dor, até porque ela é sua e de mais ninguém. Neste momento o velho jargão “vá à luta” é a única saída. Sua vida, sua dor, sua luta. Nada é definitivo.
- A morte é certa. – rebateu ela.
- Quem garante? Ninguém voltou com fotos, vídeos ou provas do que há do outro lado, mas acreditar que quando se morre tudo se acaba é muito arriscado. O assombro pode ser muito grande!
- Eu não acredito nesse negócio de vida após a morte. – confessou ela.
- Não deve acreditar mesmo.
Ela o encarou e ele acrescentou:
- Se acreditasse não tomaria a decisão de tirar a própria vida.
Ela riu e desdenhou:
- Tá dizendo que você acredita naquela baboseira de queimar no fogo do inferno?
- Acredito que a vida é uma dádiva e que ninguém tem o direito de jogar fora algo tão precioso. Se de toda ação provem uma reação, não posso negar que um suicida tenha que arcar com seu ato.
- Você está insinuando que quem se mata vai direto para o inferno?
- Quem saberá responder?
Ela riu, deu de ombros e disse sem medo de errar.
- O inferno não deve ser pior que minha vida.
- Costumamos não temer o desconhecido como deveríamos.
- Coisa mais idiota acreditar que queimar eternamente bota medo em alguém.
Manuel não disse nada, mas naquele ponto ela precisava ouvir mais daquele completo estranho.
- Se eu desistir agora o que vou fazer?
- “Não estejais ansiosa por coisa alguma”, diz o sábio.
- Isso não vale.
Ele riu. Ela insistiu:
- O que farei caso decida voltar pra casa?
- Deixe o futuro ser presente quando o futuro chegar, viva o agora. Esta sua ansiedade só vai sabotar sua felicidade e interferir em sua capacidade de seguir adiante. Isso será um grande empecilho à realização de seus sonhos, sejam eles exteriores ou interiores.
- Não consigo deixar a vida acontecer sem ter certezas absolutas.
- De onde você tirou a ideia que existam certezas absolutas? Quando dirigiu até aqui esta manhã, você tinha certeza que neste exato momento já estaria no mundo dos mortos, entretanto está mais viva do que nunca.
Lourdes deu de ombros como quem dá fim a conversa.
- Tá chegando a minha hora. Daqui à pouco vou embora. – disparou ele.
Lourdes que já gostava da conversa ouviu aquele aviso de partida com pesar. Mesmo confrontada em suas decisões, aquele estranho lhe falou mais verdades que muitos daqueles que ela tinha como amigos.
- Acha mesmo que se me matar vou para o inferno? – tentou ela voltar ao assunto.
- Com certeza. – respondeu convicto.
- Queimar no fogo eterno? – perguntou.
- Não.
- Não? Mas o inferno não é um lago de fogo ardente, onde os desgraçados queimam pela eternidade?
Ele sorriu, mas desta vez havia ironia em seus lábios.
- Quero que pense bem e descreva sua vida em apenas uma palavra.
Ela o encarou sem entender.
- Vamos. Se pudesse descrever sua vida numa única palavra, qual seria ela?
Lourdes levou alguns segundos para responder.
- Inferno.
- Pois é. Há muitos e muitos anos conheci um homem que me dissuadiu de cometer a mesma insanidade que você está querendo cometer.
- Você ia se matar? – perguntou ela interrompendo-o.
Sem responder a indagação, voltou a seu relato.
- Lá estava eu com uma arma apontada pra minha cabeça quando este homem se aproximou e me perguntou por que eu estava prestes a cometer o suicídio. Respondi que minha vida era um inferno. Ele riu e disse: Ai se renova o ciclo. Sem entender perguntei o que ele queria dizer com aquilo. Foi ai que ele me contou uma história passada a ele por outro homem quando ele estava prestes a se matar.
Lourdes estava tão atenta que mal conseguia piscar.
- Todo suicida vai para o inferno sim, mas vai para seu inferno particular. E qual seria ele? Sua vida infernal. Pois bem, um suicida está preso num ciclo sem fim. Eterno. Por toda eternidade vai voltar na mesma vida, sofrer as mesmas mazelas só que cada vez um pouquinho pior; com isso em determinado tempo vai se matar e novamente fechar um ciclo e já abrir outro. Este é o inferno eterno de um suicida. Um suicida está predestinado a ser infeliz, caso contrario não completa o ciclo. Isso é como uma maldição que só é quebrada caso o suicida convicto enfrente a vida e prossiga até ser encontrado naturalmente pela morte. Entende?
- Eu não acredito nesse negócio de reencarnação. – disparou ela.
- Quem falou em reencarnação?
- Você.
- Não minha cara. Eu estou descrevendo o que é o inferno para aqueles que simplesmente desistem. Quer castigo pior que viver esta sua vidinha miserável mais vezes, só que cada uma delas um pouco pior?
- Isso não pode ser verdade.
- E se for?  Vale a pena arriscar?
Ela ponderou alguns segundos e confessou:
- Tenho medo de não conseguir.
- A pior armadilha que uma pessoa pode cair é aquela feita pelos próprios medos. Medo de que? De continuar infeliz? Pelo que me relatou você já está acostumado a isso. – ele riu - Caso não consiga ser feliz pelo menos você tentou. Isso já é um grande troféu. – concluiu ele já se levantando.
- Aonde vai? – perguntou ela contendo o ímpeto de segurá-lo a seu lado.
- Já chegou minha hora.
- Você não pode partir agora. Enche minha cabeça de baboseiras e cai fora?
Ele gargalhou com gosto.
- O que eu faço?
- Viva! Arrisque ser feliz. Deixe de ser esta castanheira teimosa que se recusa curvar-se à força do vendaval. Não se deixe abater por quaisquer alterações no seu estado amoroso, profissional ou emocional. Enterre o passado definitivamente. Adapte-se as novas situações. Fuja da mesmice, conheça novas pessoas, as que forem boas preserve-as ao seu lado, as que não forem tão interessantes, descarte-as. Gaste seu dinheiro com viagens, passeios. Jogue conversa fora, brinque com seus netos como se você fosse uma criança. Nunca subestime a alegria, ela sempre vem embrulhada nas pequenas atitudes. Por fim faça como eu. Deixe de se ver como uma vítima e torne-se uma sobrevivente. Siga adiante, passo a passo, lentamente saboreando todos os gostos que a vida tem. Alguns serão doces como o mel, outros fortes como a pimenta, muitos amargos como o fel, mas cada um tem sua peculiaridade. Deixe o futuro para o futuro e se perca no presente. Olhe ao redor. A vida é complicada, mas só é infinitamente maravilhosa por ser complicada. E como disse desde o começo... Tudo está bem!
Por um segundo Lourdes se virou para frente enquanto se apoiava na beirada da pedra a fim de se levantar. Quando voltou o tronco para trás o homem havia desaparecido. Imediatamente pôs-se de pé e correu até o carreador. Viu seu carro com os faróis acessos e a porta aberta. Vasculhou a área com os olhos. O sujeito havia desaparecido no ar.
Um medo sem propósito invadiu-lhe a mente. Como alguém pode desaparecer assim do nada? Perguntou-se.  Gritou o nome de Manuel. Não houve resposta. Confusa voltou para beira do abismo.
                Olhou para baixo. Uma brisa gelada a fez tremer. Imaginou-se caída no fundo da grota, seu coração descompassou.
                Foi por um triz, pensou ela.
Uma mescla de emoções borbulhava dentro do peito, confusão e euforia inebriavam-na. Nunca havia se sentido como naquele momento, mesmo ciente de quão frágil e limitada era, uma felicidade tirava-lhe o fôlego. Ainda que apavorada diante da decisão de continuar a vida, exultava por ter mais uma chance. Olhou no relógio. Já passava das onze horas. Lembrou-se que a filha passaria em sua casa ao meio dia. Ela havia marcado este almoço, pois queria que encontrassem logo o bilhete suicida.
Tremeu por dentro. E se ela entrar em casa e ler o bilhete?
Correu até o carro. Pulou no banco e girou a chave que ficara na ignição. O farol piscou e apagou. O velho fusca começou a gemer. Os faróis arriaram a bateria. Ela estava com um grave problema.
- Vamos meu querido. Eu nunca te abandonei, você não vai me deixar na mão logo agora.
Girou a chave. Nada.
Com o coração disparado vasculhou a mente tentando descobrir um plano para resolver aquele desafio.
Vou tentar fazê-lo pegar no tranco, pensou.
Ela era exímia em ligar o carro no tranco, só havia um único agravante. O carro estava virado para cima e ela teria que dar o tranco de ré; e como a estradinha era muito estreita cometer qualquer erro poderia ser fatal, visto que o acostamento era o próprio abismo.
Relutou antes de soltar o freio de mão. Caso algo desse errado, ela morreria e todos pensariam que havia se suicidado.
- O meu deus. O que fui fazer?
Pensou em ligar para filha dizendo que precisara sair. Vasculhou a bolsa, onde estaria o celular? Nada na bolsa, nem no porta luvas.
Ela riu.
Lembrou-se que havia deixado sobre a mesa. Afinal pra que um defunto precisaria de um celular?
Acertou o retrovisor, engatou ré, girou a chave pisando na embreagem. O carro deslizou morro abaixo, súbito tirou o pé da embreagem, o carro tossiu, mas não pegou. Repetiu a operação enquanto vigiava a estrada pelo retrovisor. Uma curva se aproximava, ela tirou pé da embreagem, o carro chacoalhou, pegou e acelerou morro abaixo. Foi muito rápido, ela não teve tempo pra pensar, quando viu o carro atingira o limite da estrada. Ia despencar.
Num impulso abriu a porta e se projetou pra fora. A porta aberta bateu em sua cabeça, e quase a nocauteou.
Quando se colocou em pé, viu que seu amigo inseparável jazia no fundo do precipício. Com tristeza despediu-se do amontoado de ferro retorcido e começou a correr ladeira abaixo.
A adrenalina que corria em suas veias era tanta que fazia sua carne tremer.
Depois de quinze minutos correndo, finalmente alcançou a rodovia.
Sem saber como chegaria a tempo em seu apartamento continuava correndo pelo acostamento quando a buzina de um caminhão quase a matou de susto.
Uma carreta enorme agarrou nos freios fazendo um barulho estridente. Ela pulou no mato temendo ser atingida.
Tal qual uma louca ela desatou a gargalhar caída de costas no meio da relva, uma euforia por estar viva após tantos incidentes tomou sua mente e seu corpo.
O som de uma porta batendo a fez calar, ela se ergueu e já se apoiava para levantar quando um homem baixo e forte esticou a mão para ajudá-la.
Ela o encarou, e segurou nas mãos calosas.
- Você quase se mata!
- Quase mesmo. – respondeu ela rindo da ironia da situação.
- O que faz aqui no meio do nada? – perguntou ele ainda segurando sua mão.
Ela pensou, pensou, lembrou-se do carro e disparou:
- Vim ver o nascer do sol e sofri um acidente. Meu carro despencou no barranco. Estou a pé.
- Quer uma carona?
Ela olhou para enorme carreta, depois para o sujeito que aguardava sua reposta e pensou. Que mal tem?
- Se você puder me fazer esta gentileza... Ficaria muito agradecida.
Quando a carreta começou a acelerar ela observou o relógio do painel. Dez para o meio dia e sem se conter rogou em voz alta:
- Ai me deus, me ajuda!
O caminhoneiro a encarou sem entender e perguntou:
- O que foi?
- Eu... – sem saber como explicar apelou – Você tem um celular?
- Tenho sim.
- Poderia me emprestar?
O homem tirou o celular do bolso da camisa e entregou a Lurdes, que sem nem ao menos agradecer começou a digitar os números.
- Filha?
- Oi mãe, estou um pouco atrasada. Poderíamos marcar o almoço para amanhã? – disse a filha do outro lado da linha.
- Sim, por mim tudo bem. – respondeu aliviada.
- Ótimo, mais tarde te ligo.
- Ok. Até mais tarde então.
Lurdes entregou o celular ao caminhoneiro, agradeceu e só então relaxou.
O homem aumentou o som do rádio e seguiu rumo à cidade tamborilando os dedos no volante. Lourdes recostou-se no banco esticou as pernas e apreciou a paisagem... afinal as verdades definitivas que ela tinha a seu respeito haviam se dissipado como fumaça ao vento, agora a única coisa que lhe sobrou foi a verdade relativa daquele exato momento. Quanto ao futuro? Ela não tinha a menor idéia do que seria.
Por agora tudo estava muito bem.




                

Nenhum comentário:

Postar um comentário