Tudo está bem
Lurdes
Maria olhou mais uma vez para o relógio que parecia mover-se em câmera lenta. Dormir
naquela noite estava fora de cogitação. E ela, que sempre foi dorminhoca,
precisou lutar contra a vontade de tirar um cochilo.
Sua
velha conhecida solidão, se fazia presente, mas desta vez era mais que bem
vinda. Companhia era o que ela menos desejava.
Não,
ela não faria nada por impulso, demorou meses consumindo-se em alternativas que
não a satisfaziam, por isso optou pela saída que pensou ser a mais acertada
para dar fim aquela vidinha estranha, hostil e absolutamente sem sentido.
Após
esta decisão, deixou de se consumir sobre o certo ou o errado, e nem se
permitiu estremecer á voz de sua consciência. Finalmente estaria livre dos estragos de seus
fracassos; fracassos que a princípio lhe pareciam saídas perfeitas.
Para
amenizar a angustia da espera, abriu uma garrafa de vinho, serviu-se em uma
taça de cristal e bebeu não tão lentamente quanto deveria.
Isso
a fez relaxar.
Relaxada
demais sentiu que uma modorra repentina a arrastava para o sono. Mas tinha
consciência disso. Um caleidoscópio de imagens, quase de sonho, formou-se em
sua mente; súbito estremeceu e percebeu que ainda estava acordada.
Receosa
de ser vencida pelo torpor preparou um café forte.
O
apartamento fedia fumo. Não era para menos, em menos de oito horas deu fim a um
maço de cigarros.
Uma
azia começou a incomodar. Cogitou comer algo, preferiu não arriscar, pois seu
estômago revirava com a expectativa.
Ligou
a televisão que não transmitia nada interessante, desligou. Ligou o som e
colocou um cd do Pink Floyd. I wish you here, era a música ideal.
Toda
sua história, que a seus olhos, era tão abominável quanto um espetáculo amador
mal interpretado, estava prestes a fechar as cortinas.
Aguardou
ansiosa, até que finalmente os ponteiros indicavam que já era de partir e
acabar logo com aquilo.
Ajeitou
a bolsa à tira colo, deu uma última olhada dentro do apartamento antes de
apagar a luz da sala, trancou a porta e seguiu para garagem.
Desceu
vagarosamente os três lances de escada até o térreo. Um leve sorriso se abriu
em seus lábios quando avistou seu velho fusca, o amigo de todas as horas.
Lurdes
Maria nunca foi mulher de ostentar. Se o fusca a levava e a trazia de todos os
lugares, sem nunca lhe dar problemas, por que trocar de carro? Respondia sempre
que os filhos sugeriam que ela merecia um meio de transporte mais confortável.
Conferiu
o relógio. Quatro e meia da madrugada. Estava no horário.
Girou
a chave, e como de costume seu companheiro não a deixou na mão. Precisou gastar
um tempinho nas manobras, pois sem direção hidráulica, as rodas só se moviam
mediante à força exercida no volante.
O
frescor da noite a as ruas desertas deixariam aquele viagem extremamente
prazerosa, não fosse o destino final.
A
adrenalina que jorrava em suas veias era intensa e prazerosa. O ponteiro do
velocímetro encostava no 110 quando ela sentiu o volante trepidar na estrada de
terra esburacada. Rapidamente ergueu um pouco o pé do acelerador. Um acidente
era tudo que ela não queria naquele momento.
Por
um segundo imaginou estar sonhando, afinal toda sua existência não se mostrava
mais real, do que as quimeras de suas fantasias, contudo rapidamente voltou à
realidade e viu que seguia pela estrada escura. Desta vez nada alteraria seus
planos funestos.
Ao
olhar para o céu, notou que as últimas estrelas se apagavam à medida que ela se
aproximava de seu destino. Temendo não chegar antes do nascer do sol, afundou o
pé no acelerador novamente. Quando o velho fusquinha jogou a traseira de lado,
ela precisou de força para não cair no barranco. Com o coração disparado e as
mãos tremulas freou bruscamente. O carro morreu.
-
Droga! – bradou esmurrando o volante.
Rapidamente
girou a chave. O motor engasgou e não ligou. Girou a chave para trás, respirou
fundo e tornou a tentar. Desta vez o carro pegou. Com mais cuidado e menos
velocidade acelerou morro acima.
Já
estou quase chegando, pensou ao fazer uma curva no alto do penhasco. Dirigiu
mais alguns metros e, assim que avistou a grande pedra chata, estacionou bruscamente
no meio da picada.
Eufórica
e resoluta demais para pensar com clareza nas conseqüências de seu ato
derradeiro, sentiu uma leve vertigem, mas assim que abriu a porta foi atingida
pela brisa gelada da madrugada e imediatamente recompôs-se.
Deixou
os faróis do carro ligado para enxergar melhor o caminho e seguiu lentamente
até a grande pedra chata.
Já não era a primeira vez
que Lurdes Maria se sentava à beira daquele precipício. Das vezes anteriores
foi dissuadida pela covardia de tirar sua a vida, ou quem sabe, pela coragem de
continuar lutando em busca do que acreditava ser sua felicidade. Porém, naquele
dia, nada a faria mudar de opinião.
A visão de um futuro
melhor havia sido apagada pelos últimos acontecimentos e ela não se sentia
motivada a encarar um recomeço. Resumindo
em pouquíssimas palavras, já há algum tempo ela passou a sentir uma profunda
aversão pelo mundo, pela vida e principalmente, por ela mesma. Acreditava que
sua vida não passava de uma azarada soma de infortúnios. E em certo ponto, ela
bem que tinha razão. Poucas pessoas conseguiriam suportar tudo que esta jovem
senhora já suportou, entretanto a saída que ela buscava era a única que não
tinha retorno.
Faltava apenas quatro dias
para que Lurdes Maria completasse meio século de existência. Mas isso não tinha
importância; ela não esperaria nem mais um dia para concluir seu intento.
Suspirou fundo. Olhou para
o céu e constatou que uma teimosa estrela resistia brilhando. Aproximou-se do
abismo, abaixou-se e sentou-se à beirada da pedra.
Seu plano era simples,
rápido e indolor. Ter como derradeira visão de suas retinas o nascer do sol e depois
saltar no vazio do precipício.
Ela chegou a pesquisar na
internet como seriam seus derradeiros segundos de vida. A dúvida se sentiria
muita dor ou se poderia não morrer no impacto preocupou-a, mas seria um azarado
milagre se ela não morresse após despencar mais de cem metros em queda livre.
Uma pitada de medo fez um calafrio percorrer sua coluna, afinal em matéria de
azar ela era campeã.
Lurdes havia escolhido a
grande pedra chata, por saber que o amanhecer visto daquele lugar era um
espetáculo de tirar o fôlego.
Olhou para baixo e pensou
que certamente a morte já lhe aguardava em meios as rochas. Um vento gelado fez
seu corpo franzino estremecer novamente.
Súbito lembrou-se do
bilhete que havia deixado estrategicamente posicionado sobre a mesa da sala.
Dias atrás havia marcado um almoço com a filha, ciente que assim que a caçula
desse por seu desaparecimento certamente arrombaria a porta do apartamento.
Será que deixei tudo bem
explicado? – pensou.
Relembrou as palavras:
“Queridos filhos, sei que
a princípio podem não entender os motivos que me levaram a tomar esta atitude.
Infelizmente já não consigo mais continuar lutando, pra mim basta. Sei que com
o tempo e o amadurecimento vocês irão me perdoar por desistir desta luta
inglória que tem sido minha vida.
Talvez a dificuldade em
aceitar minha decisão, seja por vocês me terem como mulher forte, fato que
dissimulei com perfeição durante todos estes anos. Na verdade, suportei todas
as mazelas de minha vida para provar a todos, que eu era uma mulher de fibra,
nunca desmoronei diante das desgraças, jamais revelei minhas reais frustrações
e talvez por este motivo consegui chegar até aqui, mas não dá mais.
Eu simplesmente não
aguento mais!
Tenho plena consciência de
que neste momento que estão lendo este bilhete sou a causadora da tristeza e
desapontamento que tomam suas emoções, mas isso passa. Podem ter certeza, tudo passa nesta vida.
Amo cada um de vocês e sei
que a saudade será grande.”
Amor mamãe
Propositadamente disse
muito, mas não disse nada. Afinal mesmo que minudenciasse seus motivos, ninguém
entenderia. Um meio sorriso lhe veio aos lábios.
Será que sou sádica? –
questionou-se.
Não sou sádica não, só não
suporto mais viver assim. Respondeu pra si mesma. Continuar vivendo não tinha
mais sentido, há tempos seu mais profundo anseio tornara-se o da destruição,
deixar de existir tinha tomado conta de sua mente de tal maneira que diluiu por
completo seu instinto de viver.
Lá estava ela pronta para
tirar a própria vida e preocupada com o que os outros iriam pensar. Tudo bem
que “os outros” eram seu filhos, frutos de suas entranhas. Pessoas incríveis.
Julgava ela. Seus filhos nunca foram problema, muito pelo contrário, foi
justamente pela existência destas três pessoas que ela havia desistido do
suicídio das outras duas vezes.
O tempo passou e as crianças tornaram-se
adultos, casaram-se, tiveram filhos e estavam muito bem financeiramente, não
precisavam mais dela. Certamente seriam reconfortados por seus pares e o luto
pelo suicídio da mãe seria breve.
Resolvida em suas decisões
expulsou da mente todos os pensamentos de remorso e até as boas lembranças
focando-se no objetivo.
A luminosidade aumentava.
Enfim assistiria o amanhecer e daria fim a todo aquele tormento.
Minutos depois um
alaranjado intenso riscou o horizonte. Lá vinha ele, a única testemunha de sua
insanidade.
O coração começou a bater
mais forte, chegando a ficar descompassado; ela prendeu a respiração e mordeu
os lábios.
O alaranjado ganhou um
brilho mais intenso iluminando o azul escuro. Ele estava chegando. Lindo
majestoso, cheio de poder e de vida.
Uma lágrima escapou de
seus olhos umedecendo a face. Ela que já estava com os pés dependurados no
vazio apoiou as mãos na pedra ao lado do corpo, a fim de dar impulso. Fechou os
olhos, não queria ver o que estava prestes a fazer, enrijeceu os músculos dos
bíceps e para seu pavor ouviu uma voz bem atrás de si:
- Que espetáculo!
O susto foi tanto que ela
quase caiu no precipício.
Ao virar o pescoço para
trás deparou-se com um homem em pé, de altura e peso normais; por outro lado,
porém tinha uma estranha aparência. Sua pele era branca como a neve que se
acumulava em cima dos telhados, os olhos azuis protuberantes e
surpreendentemente luminosos, e o cabelo da cor de trigo por colher.
Diante do silêncio da mulher ele perguntou:
- Posso me sentar ao seu
lado?
De onde saiu este sujeito,
perguntou-se aturdida ainda em silêncio.
- Posso? – tornou a
perguntar.
- O que faz aqui? –
perguntou ela com os olhos arregalados.
- Vim assistir o nascer do
sol. – respondeu calmamente.
Ela ficou tão furiosa com
a intromissão daquele estranho que lhe faltaram palavras.
- Quem cala consente. –
disse ele, e sem constrangimento aproximou-se, apoiou a mão esquerda no ombro
da mulher e sentou-se ao lado da aturdida Lurdes Maria.
Posicionou-se exatamente
como ela, nádegas na beira do abismo e os pés pendurados no vazio.
Eles se encararam.
Ela raivosa, e ele estranhamente
feliz!
- Meu nome é Manuel. –
apresentou-se estendendo a mão para Lurdes.
Ela não moveu nenhum
músculo.
- Meu nome é Manuel. –
tornou a dizer.
- Como você é
desagradável, já sei que seu nome é Manuel. – bradou entre dentes.
- Desculpe. Só quis ser
educado, mas já que não quer conversa vamos assistir o nascer do sol.
Lurdes Maria ainda o encarava quando ele virou
o rosto para o horizonte.
O sol já se mostrava pela
metade e ela ainda o encarava respirando ruidosamente. Por um segundo teve vontade
de empurrar aquele estranho, com cara de felicidade, abismo abaixo. De repente
um sorriso brotou nos lábios do homem, ela estremeceu de raiva.
Temendo a ideia de ao
invés de suicida tornar-se uma homicida, fechou os olhos, respirou fundo e
também mirou o horizonte.
Meio minuto depois, sem
conseguir se acalmar voltou-se para o estranho e perguntou:
- Você pretende ficar aqui
por muito tempo?
Ele se voltou para ela e
sem afetação respondeu:
- Não marquei nada para
esta manhã.
Ela bufou e voltou-se para
frente, ele ergueu os ombros indicando que não estava preocupado com
absolutamente nada, e também voltou a contemplar o nascer do sol.
Dois completos estranhos,
lado a lado, sentados à beira do abismo observando o sol desgrudar da linha do
horizonte.
O silêncio só não era
total, pois as aves começavam a sinfonia do amanhecer.
Sem saber exatamente como
proceder, ela pensou em inúmeras possibilidades e decidiu que se talvez permanecesse
calada o homem se sentiria constrangido e logo após assistir o nascer do sol
partiria.
Aquele momento decisivo
tornara-se um momento de espera.
Droga! Até minha morte tem
que ser complicada, pensou enquanto aguardava impaciente.
Quando finalmente o sol
afastou-se alguns centímetros do horizonte, Lurdes virou-se para o estranho e
decretou:
- Pronto! O sol já nasceu.
Você pode ir embora.
- Vou ficar mais um pouco.
– respondeu ele ainda com aquele sorriso impróprio para ocasião.
Lurdes bufou e como
criança emburrada disparou:
- Eu estava aqui primeiro
e quero ficar sozinha.
- O penhasco é público, ou
você comprou este lugar?
- Não! Eu não comprei este
lugar. – respondeu exasperada – Mas quero ficar aqui sozinha. Entendeu?
- Um ótimo lugar para
ficar sozinho é dentro da própria casa. – respondeu malcriado.
- Você não se importa por
sua presença não estar agradando?
- Pra ser bem sincero.
Não!
- Por favor, preciso ficar
sozinha. – implorou pensando que caso mudasse sua estratégia, mostrando-se
humilde e educada, poderia dissuadi-lo a permanecer no local.
- Pra fazer o que você vai
fazer não precisa ficar sozinha.
- E o que você pensa que
eu vou fazer? – perguntou ela assustada com aquela afirmação.
- Vai se suicidar.
- Quem disse isso?
Ele riu da cara de
assombro estampada no rosto da mulher.
- Quem disse que eu vou me
matar? – tornou a perguntar virando o corpo na direção do estranho que
demonstrava saber bem mais do que deveria.
Manuel também se virou
para Lurdes e propôs.
- Vamos, acabe logo com
isso. Eu serei sua testemunha ocular.
Ela estava perplexa.
Primeiro aquele estranho quase a mata de susto, aproximando-se sem fazer
barulho, depois com uma felicidade imprópria se senta ao seu lado como se fosse
um velho amigo, relata saber de suas intenções e por fim quer ser testemunha de
sua decisão. Sem perceber, toda fúria que sentia transformou-se em dúvida e uma
pontada de medo.
Se ele sabe que vou me
matar, por que não tentou me desencorajar? Por que está com esta cara de
felicidade? Será que é um sádico psicopata? Será que vai querer me empurrar?
Questionava-se confusa.
Temendo ser assassinada,
recuou alguns centímetros afastando-se de seu companheiro de precipício.
Manuel riu, só que desta
vez uma breve gargalhada escapou de sua boca.
Lurdes tremeu.
- Tá com medo?
- Eu? Com medo de que? –
perguntou com a voz tremula.
- Acho que você está com
medo que eu lhe empurre abismo abaixo.
Como ele poderia saber o
que ela estava pensando, questionou-se ainda mais confusa.
- Quem disse que estou com
medo, ou que vim aqui para cá me suicidar?
- Sua expressão corporal,
sua irritação e esta cara de autopiedade.
- Cara de autopiedade?
Você é um louco.
- Louco? Quem não é louco
neste mundo insano? Louco talvez, mas definitivamente não sou suicida.
- Eu não sou suicida!
- Ah não? E o que veio
fazer aqui?
- O mesmo que você. Vim
apreciar o amanhecer.
Ele a encarou meneou a
cabeça e sem constrangimento afirmou:
- Você mente muito mal.
- Você é um grosso!
Primeiro se senta ao meu lado sem ser convidado, depois diz que sou uma suicida
e agora me acusa de mentirosa? Quem você pensa que é?
- Manuel. – disse
estendendo a mão. – A sua disposição.
- Isso só pode ser uma
brincadeira. – bufou irritada.
- Desistir da própria vida
não é brincadeira. – respondeu sem o costumeiro sorriso nos lábios.
- Quem disse que eu
desisti?
- Não seja hipócrita. Quando
vai parar de mentir pra você mesma?
- Como ousa? – bradou ela
furiosa.
Depois de um sorriso largo
ele completou:
- Assuma suas decisões com
coragem. Você não foi a primeira e não será a última a fugir da luta. Tem gente
como você por todo canto.
Lurdes estava boquiaberta
com a audácia do estranho. Isso não o afetou, muito pelo contrário, a reação de
Lurdes só o encorajou mais.
- Há momentos na vida que
o mundo vira de pernas para o ar. O certo se torna incerto, os sonhos se
mostram pesadelos e o roteiro simplesmente empaca. Estacar no ponto onde a dor
é mais aguda é uma forma de perpetuar aquilo que nos perpetua... Autopiedade...
- Autopiedade? – foi a
única palavra que Lurdes conseguiu pronunciar.
-
Sim. Você vai se matar por estar cheia de peninha de você mesma! – ironizou- Ninguém
morre de dor, mas alguns se matam por causa dela.
- Você não sabe nada da
minha vida! – disparou.
- Esta sua decisão diz
tudo que eu preciso saber. Você é uma fraca de espírito.
Lurdes inspirou, preparando-se
para protestar.
- E o pior – continuou
Manuel –É que nem isso você consegue assumir.
- Fraca de espírito? Você
não tem a menor idéia de tudo que já passei. Não sabe nada do meu sofrimento,
de minhas lutas e fracassos... – lágrimas escorriam dos olhos de Lurdes – Você
não imagina o quanto eu tentei...
- Você não chegou nem aos cinqüenta
anos e já vai desistir? Por que não espera mais uma semaninha?
O fôlego entrecortou e Lurdes
estremeceu. Como assim? Ele falou em cinquenta anos e depois falou em uma
semana. Será coincidência, ou ele sabe que na semana que vem farei aniversário?
Questionou-se pra lá de intrigada.
- Como sabe que faço
aniversário na semana que vem?
- Faz mesmo? Parabéns! –
ele parou, ponderou alguns segundos e estalando os lábios num disc-disc
completou – Parabéns não, minhas condolências. – desdenhou.
- Você é irônico mesmo, ou
está tentando se passar por engraçado?
- A ironia não é minha.
Ela é toda sua. Você decide se matar uma semana antes de seu aniversário e quer
que eu diga o que?
- Fácil é julgar. – ela tentou
se defender.
- Quem está julgando quem?
A vida é sua, você faz dela o que quiser, mesmo que isso seja fugir da luta e dar
fim em tudo.
- Estou desempregada. –
tentou justificar-se.
- Foi despedida?
- Me demiti.
Lurdes esperava ouvir
alguma crítica, algo para argumentar, mas Manuel se calou e simplesmente
voltou-se para o horizonte. Dois minutos de silêncio e nada. Isso a incomodou
tanto que ela voltou a falar.
- Fui injustiçada.
- É? Normal num mundo
competitivo.
- Normal pra você. –
rebateu aliviada por ter algo pra dizer. – Você não sabe o que é dedicar-se a
uma empresa por longos anos e depois ser deixada de lado.
-Realmente não vivi esta
experiência. Deve ser difícil ficar sem dinheiro pra sobreviver com dignidade.
- Dinheiro não é o
problema.
- Não? – perguntou
tentando mostrar-se surpreso.
-
Tenho outras fontes de renda.
- Então seu problema é só
orgulho ferido?
- Orgulho ferido? –
repetiu indignada.
- E não? Seu patrão não
lhe deu o valor devido, você se demitiu e agora quer se matar pra deixá-lo com
peso na consciência.
- De onde tirou esta
ideia? Depois de ter-me dedicado tanto para empresa ver a filhinha do patrão
assumir o cargo que por direito era meu, foi apenas a gota d’água. Você não
sabe de nada.
- Sou todo ouvidos.
-Quem disse que eu quero
falar de meus problemas com você?
- Por mim tudo bem. Se não
quer falar não fale.
O silêncio voltou a
imperar. Ela o encarou, porém ele não se alterou. Parecia mesmo deliciar-se com
a leve brisa que soprava.
A irritadiça suicida
confabulava com sua mente. Quem este sujeito pensa que é? Ele não sabe nada
sobre minha dor. Ele nem imagina pelo que já passei...
A palavra sofrimento havia
se tornado obsoleta em sua vida. Um amontoado de decepções, traições e
dissabores tornou o sofrimento um mero chavão. Para Lurdes Maria a dor apenas
existia como fato constante e natural em sua história. Ela nunca foi do tipo que
ficava choramingando suas mazelas para outras pessoas, nunca desejou a piedade
de ninguém, ao invés disso remoía sua dor diuturnamente. Mas, isso era problema
seu e não importava naquele momento. O importante era esclarecer os fatos. Como
sempre, ela desejou explicar seu ponto de vista e fazer aquele completo
estranho entender que tudo não era tão simples como ele dizia. Afinal, só tomou
aquela malfadada decisão por acreditar já ter encontrado o fundo do poço.
Ainda olhando para o rosto
de Manoel viu que um largo sorriso abriu-se em seus lábios. Ela bufou. Ele
gargalhou.
- Do que acha graça?
- De você. – respondeu
ainda virado para o horizonte.
- Tenho cara de palhaça?
– Não. Você tem cara de
quem não sabe o que quer da vida.
- Eu sei muito bem o que
quero!
- Ah sabe é? – perguntou
olhando-a com o rabo do olho.
- Sei sim. E você já sabe
que horas vai embora?
- Ainda não decidi.
A irritação dela era tanta
que sem perceber começou a chorar. Aquilo não poderia estar acontecendo. Nem ao
menos morrer em paz ela conseguia. Súbito ele ergueu o braço e delicadamente
bateu em suas costas dizendo:
- Está tudo bem, tudo vai
acabar bem. Pode confiar.
- Tire as mãos de mim! –
gritou em meio aos soluços que lhe apertavam a garganta. – Você estragou tudo.
- Tá tudo bem. – repetiu
como se aquilo fosse um mantra.
- Pára de falar “tá tudo
bem”.
Ele a encarou e mesmo sem
dizer nada ela viu em sua fisionomia que ele dizia mentalmente: Tá tudo bem.
- Eu só queria morrer em
paz. – choramingou ela desconsolada.
- Posso lhe garantir que
este não é um tipo de morte em paz.
- O que sabe sobre morte?
- A lei da morte consiste
em não haver permanecia entre todos os seres vivos. Algo natural quando acontece
no momento certo. Já a lei da vida é persistir, insistir, sempre lutar mesmo
que isso cause muita dor.
As palavras de Manuel
geraram um turbilhão de emoções dentro de Lurdes, ela abriu a boca para
esbravejar, mas desistiu.
Um gavião grasnou no céu.
Manuel seguiu o voo rasante deslumbrado com a beleza do pássaro.
- Que maravilha! A vida é
simplesmente incrível!
Cada atitude, cada
palavra, cada gesto de Manuel fazia Lurdes tremer inconformada.
- Sua vida pode ser
incrível, mas a minha de incrível não tem nada.
Ele a encarou e apertou os
lábios como quem iria falar, mas ao invés disso voltou-se novamente para o
horizonte calado.
- Diga. – pediu ela.
- Pelo que vejo você está
forte e saudável, também não detecto traços de desespero em sua face, então
nenhuma grande desgraça se abateu sobre sua vida, isso só pode significar uma
única coisa: Seu sofrimento tem origem no passado, isso é: Ele não passa de um hospedeiro
do seu ego... – ele fez uma pausa e depois completou – Para ser feliz basta
despejá-lo sem aviso prévio e sem prazo pra que ele arrume outra moradia.
- Simples assim? –
ironizou ela.
- Sofrimento se alimenta
de sofrimento, ele precisa de sua autorização para permanecer lhe atormentando.
- Eu não sofro porque quero.
– disparou ela na defensiva.
- É claro que este padrão
é inconsciente, mas se prestar bem atenção em sua vida verá que seu
comportamento está programado para continuar sofrendo. Quando entender que o
sofrimento não é um animal feroz que pode te destruir e sim um frágil fantasma
que se dilui ao seu bel prazer, mudara completamente sua vida.
- Em suma, você está
dizendo que o sofrimento não passa de ilusão.
- Sim. Exatamente isso.
Ela riu com sarcasmo e
perguntou:
- Então eu olho para minha
vida desgraçada e decreto que isso não passa de ilusão e fica tudo bem?
-Você tornou-se uma mulher
amarga e infeliz por causa das situações que ocorreram em sua vida, o problema
é que acredita veementemente que este ser infeliz é você. O medo inconsciente
de perder esta identidade gera uma forte resistência a qualquer forma de
não-identificação. Pessoas assim preferem perpetuar o sofrimento a mudar para
uma nova experiência de vida.
- As coisas não são bem
assim...
- Fatos inesperados podem
ocorrer na vida de todos nós, - ele a interrompeu - o que muda é a forma como
encaramos a situação. Deparar-se com uma injustiça machuca, eu sei, mas deixe
que o peso da injustiça fique nas mãos de quem a cometeu. Impedir que ela se torne
parte de sua vida cotidiana é a melhor solução para seguir em frente. No mais... – ele se calou.
- No mais? – questionou
ela curiosa.
- Não posso acabar a frase.
– respondeu ele.
- Por que não pode?
- Porque você me pediu
para não falar mais... Tudo vai ficar bem.
- É só isso que você sabe
falar. Tá tudo bem. Tudo vai ficar bem...
- Mas tá tudo bem mesmo.
- Não, não tá tudo bem.
Minha vida tá um caos, estou desempregada, já fui rica, perdi tudo, fui traída
por um marido canalha, enviuvei do segundo marido, fui roubada, humilhada,
perdi meus pais, vivo longe de meus filhos, estou envelhecendo, meu cabelo está
caindo, minha pele enrugando e minha autoestima zero.
Ele se voltou para ela,
aproximou-se um pouco e perguntou:
- Fora isso, está tudo
bem. Não está?
Ela bufou irritada.
- Fora isso o que me
sobrou?
- Tem absoluta certeza de
que não sobrou nada de bom?
Ela pensou por alguns
segundos.
- Meus filhos e meus
netos, mas...
- Mas eles têm a vida
deles e eu a minha. – ele a interrompeu falando palavra por palavra o que ela
iria dizer.
Ela o encarou.
- A verdade é que você não
se permite ser simplesmente feliz com o que tem. Precisa desesperadamente buscar
esta dor miserável para continuar sendo a vítima.
- Como ousa falar da minha
vida?
- A sua vida é sua, o seu
destino está em suas mãos. Os acontecimentos que tanto te açoitam nada mais são
que conseqüências das escolhas que você tomou. Isso significa que pode mudar
toda sua história apenas deixando seus medos invisíveis de lado, e esta
vergonha apavorante que sente por suas escolhas desastrosas, e a maldita culpa
de nunca ter atingido as tais metas utópicas que você mesma decretou pra si.
- Fácil. – desdenhou
enquanto enxugava o rosto com a manga da blusa.
- Hum, hum. Fácil assim.
Sua sensibilidade excessiva corrobora para que sofra mais diante dos
infortúnios de sua vida. Caso pondere com sinceridade verá que muitas vezes
reagiu com exagero diante de fatos diminutos; levando tudo para lado pessoal.
- Eu não sou assim.
- Não? Pelo que me disse,
seu patrão foi injusto colocando a própria filha num cargo que seria seu.
Certo?
Ela assentiu com a cabeça
e ele prosseguiu.
- Você tinha todo direito
de ficar chateada, confrontar seu patrão e até pedir demissão, mas daí a ser
esta a gota d’água para pôr fim a própria vida... – ele fez uma pausa e riu –
Isso é entregar toda responsabilidade de sua vida nas mãos dos outros.
- Mas...
- Calma! – ele pediu
interrompendo-a – O dono de uma empresa tem todo direito de contratar ou
demitir quem bem entender quando bem entender. Se ele cometeu uma injustiça,
você até poderia ficar magoada, porém quando decidiu levar esta mágoa como
outro troféu de vida, você optou por destruir seu direito e dever de seguir em frente.
Jogou no lixo sua paz de espírito e pegou a mágoa e guardou-a na sua caixinha
de desgostos particulares; Um troféu à mais numa caixinha que já há muito tempo
deve estar abarrotada de rancores. Se ao invés de ficar ruminando sua tristeza,
pedisse demissão e partisse para outra, não tardaria a encontrar novos
caminhos, novos amigos, novos horizontes. Você me entende?
Ela não sabia se ria ou se
chorava daquela lição de vida e moral que levava daquele desconhecido. E mesmo
com lágrimas pingando ela sorriu desconsertada.
Ele também sorriu e
repetiu:
- Tá vendo. Tá tudo bem.
- Você é surdo ou louco?
Você não me escutou? Minha vida está um caos!
- Você sabe o que é caos?
- Minha vida é um caos.
- Você pensa que sua vida
é um caos, mas você não sabe nada sobre o caos. Vou lhe dizer o que é caos.
Caos é uma situação na qual você não pode mudar os acontecimentos, não há a
quem recorrer ou algo a fazer a não ser assistir o que está por vir.
Ela já ia rebater quando
ele ergueu a mão e pediu:
- Por favor.
Ela engoliu as palavras e
ele imediatamente voltou a falar.
- Caos é o que se instaurou
no Titanic depois que todos os botes salva-vidas já haviam partido. Ou o
sentimento de quem estava no nonagésimo andar do Word Treide Center, logo acima
de onde o avião colidiu. Enfim, caos é quando não há nada humanamente possível
que você possa fazer para mudar os acontecimentos. Agora você diz viver um caos
por estar desempregada, por ter sido traída e vítima do curso natural da vida,
que nada mais é que enterrar os pais afastar-se dos filhos e envelhecer?
Lurdes que o encarava com
curiosidade, ponderando aquelas palavras, assim que ele se calou disse:
- Da maneira que fala faz
tudo parecer natural.
- A vida é natural mulher!
– bradou com veemência - e esta naturalidade traz consigo nuances diversos.
Alguns bons outros nem tanto, mas nada do que você me relatou é sinônimo de
caos.
Lurdes abaixou a cabeça e
mirou o vazio do abismo. Ambos estavam em silêncio. O único som agora era o
farfalhar das folhas nas árvores logo atrás e o canto de alguns sabiás.
É estranho, pensou ela,
que estivesse ponderando algo que minutos atrás era fato consumado. Nos últimos
dias ela jamais cogitou a possibilidade de que sua decisão fosse algo errado. Porem
a presença daquele estranho lhe trazia tais pensamentos. E isso a estava
confundindo tremendamente.
Ela admitia ser
excessivamente sensível, reagia com exagero a fatos insignificantes e às vezes
levava as coisas para o lado muito pessoal, mas ela sempre atribuía esta sua
sensibilidade a tantas decepções. Vivia armada.
- Estou cansada de sofrer.
Nada faz muito sentido. Você deve estar achando que eu sou uma covarde que
desistiu da vida por nada, mas não é isso. Os motivos que me trouxeram até aqui
são reais e muito perversos.
- Nesta sua busca de
atenção e solidariedade você acrescenta uma boa pitada de dramaticidade, sabia?
Não estou menosprezando seu sofrimento. Ninguém vive sem estar exposto ao
sofrimento ou a perda. Acredito que os motivos que a trouxeram até aqui são
muito fortes, no seu ponto de vista. Isso porque o instinto natural de
sobrevivência acorda o ser egoísta que habita em cada um de nós; martelando que
a dor que nos aflige é a pior. Uma dor de dente incomoda muito mais para quem a
está sentindo, do que a dor da fome de todas as crianças na África. A traição
de um marido canalha dói muito mais para a esposa traída, do que a dor causada
pela infinidade de vidas perdidas em todas as guerras. E por vai. Desejar por um fim em sua dor é natural pra
você, mas já pensou em seus filhos? Como eles se sentirão ao saber que a mãe
simplesmente desistiu e os abandonou?
- Eu não os abandonei.
- Caso conclua seu intento,
você nada mais terá feito que os abandonar.
- Todo mundo morre. –
rebateu ela automaticamente.
- Ainda bem que todo mundo
morre, caso contrário haja terra para tanta gente. – ironizou. - Falando em
filhos, você deixou um bilhete suicida?
- Não é da sua conta. –
respondeu irritada.
- Espero que tenha
indicado o local aonde iria se matar.
Lurdes repassou a carta
mentalmente. Não, ela não mencionou o
local nem como faria sua passagem. Pensou mais um pouco e sem medo de errar
disparou.
- Sempre vem gente aqui,
alguém vai encontrar o meu carro e chamar a polícia.
- Tomara que seja alguém
de boa índole, alguém que se importe, pois caso apareça algum gatuno, seu fusca
vai para o desmanche enquanto seu corpo apodrece lá embaixo. – disse apontando
para o abismo. - Coitados de seus filhos. Saberão que a mãe os abandonou, mas
nem um corpo vão ter pra enterrar. – ponderou.
- Droga! – bradou ela
batendo a mão cerrada na lateral do corpo.
- Tá tudo bem.
- Cala a boca!
- Opis. – murmurou
chacoalhando os ombros enquanto engolia o riso.
- Pra você é tudo muito
normal, fácil. Você não deve ligar pra nada mesmo. Tá ao lado de uma pessoa que
vai tirar a própria vida e fica com este sorriso nos lábios. Você é sádico?
Agora sem o sorriso nos
lábios Manuel voltou-se para Lurdes e perguntou:
- Diz a verdade, morrer
por causa de uma injustiça no trabalho não é um motivo banal demais?
- Eu já disse que isso foi
só a gota d’água. Vou completar cinquenta anos e jamais fui amada de verdade.
- Você casou-se quantas
vezes?
- Duas.
- E os dois te traíram?
- Não.
- E você se separou dos
dois.
- Não só do primeiro, o
segundo faleceu ano passado. Na verdade digo que não fui traída por ele, mas
vai saber...
- O que os olhos não vêem
e os ouvidos não ouvem só pode ser fruto de sua imaginação, ou de sua
necessidade de sofrer.
- Lá vem você.
- Você ouviu o que acabou
de falar... Mas vai saber...
Ela abaixou os olhos
envergonhada. Até poderia argumentar, mas no fundo sabia que ele tinha toda
razão.
- Quanto tempo faz que se
separou do primeiro marido?
- Dez anos.
- E esta traição ainda a
incomoda?
- Fui muito humilhada,
você não imagina o que tive que suportar por anos, só para manter o casamento.
- Você quer dizer que não
era feliz, mesmo antes da traição?
- Acho que fomos felizes
nos primeiros cinco anos, depois disso, o fato de eu arrumar um emprego e
ganhar mais do ele fez tudo mudar. Do dia pra noite ele se tornou meu algoz.
Tudo o que eu fazia passou a incomodá-lo tanto, que para superar este incômodo ele
passou a me diminuir em tempo integral.
- Você disse que ele
tornou-se seu algoz?
- Sim. – respondeu ela com
firmeza.
- Ele era violento?
- Não!
- Isso significa que ele
nunca usou de violência para permanecerem casados?
- Não. As agressões eram
verbais e sempre quando estávamos sozinhos. Ele fazia o tipo de bom marido
quando na presença de estranhos. Sua astucia era tamanha que muitas vezes
quando eu retrucava as agressões verbais ele alegava que eu estava ficando
louca, e que não tinha feito nada.
- Então por que permaneceu
casada?
- Porque ele era o meu
marido, pai de meus filhos.
Ele riu.
- Você está dizendo que
apesar de viver ao lado de um homem que não suportava vê-la progredir, que
denegria sua imagem pessoal e tratava-a como um estorvo, você optou por
permanecer casada pelo simples fato de dizer que estava casada?
- Assim você me coloca
como errada.
- Não é uma questão de
certo ou errado. É apenas lógica. Se alguém quer ser meu algoz e eu não estou
disposto a ser sua “vítima”, coloco pra correr na primeira agressão verbal ou
física, se este fosse o caso. Mas ao invés disso, você deu poder ao inimigo. E
pior, ainda dá, pois depois disso tudo passou a perpetuar a dor mantendo-a viva
com a repetição infinita dos abusos que sofreu. Mais ou menos como ficar
voltando o filme inúmeras vezes só para chorar de novo. Isso é papel de vítima
sabia?
- Eu não sou vítima.
- Só uma vítima tem um
algoz.
- Você distorce os fatos.
- Não distorço nada só
encaro os fatos de outro prisma.
Lurdes pensava naquela
afirmação quando ele perguntou:
- E como ficou sabendo da
traição?
- Ele me contou.
- E você o que fez?
- Disse que o perdoava,
mas... – Lourdes aquietou-se parecendo pensar no que iria revelar.
- Mas? – repetiu ele tentando
fazê-la acabar a frase.
- Mas ele me disse que não
sabia se queria ficar comigo ou com ela.
- O que?
Lurdes abaixou a cabeça.
- E o que você fez?
- Eu disse que esperaria
ele decidir, que o amava muito e que não queria perde-lo.
- Quantos anos vocês já
estavam casados?
- Quinze.
- Então depois de quinze
anos de casados, dos quais apenas cinco foi feliz, ele começou a te trair e
você optou por esperar ele decidir o que faria da vida?
- Sim.
- E quantos anos mais
ficaram casados?
- Muitos.
- Muitos quantos?
- Mais cinco.
- Então você dedicou mais
cinco anos de sua vida numa relação falida?
- Hum, hum... – balbuciou
ela pensativa.
Ele riu. Ela cerrou os
dentes e antes mesmo de se pronunciar ele desculpou-se.
- Me desculpe se pareço
insensível, é que as pessoas cavam uma cova com as próprias mãos e depois se
desesperam por não conseguirem sair do buraco. Tudo isso é passado, eu sei, mas
pense por um segundo como seria sua vida caso tivesse tomado as rédeas da
situação logo no começo. Tudo teria sido muito diferente, concorda?
- Eu fiz o meu melhor. –
tentou explicar-se.
- Tudo bem. O passado
passou, mas no seu caso ele não foi embora por completo. Depois de todos estes
anos, ainda se lembra vividamente que teve um marido mau-caráter, que lhe
magoou e que lhe traiu, enfim, mesmo que não admita, ele ainda faz parte de sua
caixinha de desgostos. Você se acostumou a viver enredada pelo sofrimento e não
tem a menor idéia de como seria a vida sem isso.
- Fui casada com ele por
vinte anos, como posso esquecer tudo que ele me fez.
- Como poderia esquecer
tudo que você permitiu que ele fizesse com você, melhor dizendo.
- Está novamente afirmando
que a culpa é minha? Eu o amava muito.
- Com certeza a culpa é
sua! – afirmou ele. – Só você poderia por um fim as humilhações, desgostos e
tudo mais. Mas almejando realizar o sonho utópico de ser a esposa que envelhece
ao lado do cônjuge, cria filhos e depois embala netos, optou por suportar tudo.
Ninguém suporta viver sendo humilhada, maltratada e denegrida por muito tempo
sem sucumbir à loucura, por isso sua mente criou desculpas para todas as dores.
Ele riu pra ela com um
sorriso largo e sem medo de errar afirmou:
- Você não o amava não. O
que fez foi simplesmente decidir qual dor doeria menos. Entre não ter mais o
marido que você idealizou a vida toda, e tê-lo mesmo que ele lhe magoasse
muito, você escolheu a segunda opção. Só o que não sabia é que tudo na vida
segue um curso determinado e que mediante a esta verdade chegaria a hora que a
relação simplesmente findaria pelo curso natural da situação.
Ela o encarou pensativa.
- Quem optou pela
separação?
- Eu.
- Tá vendo. Ele era tão
pequeno, que nem dar fim ao casamento ele conseguiu. Menina você não perdeu
nada. Você se livrou de um peso morto!
Pela primeira vez Lurdes
riu naquela manhã.
- A traição foi apenas uma
estratégia do universo pra te dar um “chega pra lá”.
- Universo? – perguntou
ela encarando-o. Universo era a palavra que ela usava quando queria se referir
a uma força superior. Isso porque já há algum tempo decidiu deixar esta
conversa de Deus pra os espiritualistas.
Manuel a encarava quando,
desviando completamente o foco da conversa, ela perguntou:
- Você não acredita em
Deus?
- Olhe para o horizonte. –
pediu ele apontando para o vale quilômetros à frente. -Quem você acha que fez todas
estas maravilhas? As nuances de alaranjado e azul que colorem o céu, aquele rio
que serpenteia a floresta sem fugir de seu curso, estes ipês amarelo salpicados
entre a infinidade de tons de verde, neste mar de árvores? Ouça o canto dos
pássaros, acha mesmo que tudo isso é obra do acaso?
Ela não respondeu, e ele
voltou a falar:
- Evolução, energia, acidente,
criação, sina, universo. Somos livres para nomear como bem entendermos o poder
gerador de todas estas maravilhas, mas estas palavras são usadas para descrever
uma única coisa. Deus! Quando eu digo
universo quero na verdade dizer Deus.
- Acredita ou não?
- Lógico que sim, a vida
sem fé em um Ser Supremo é como um livro em branco que só serve mesmo para a
fogueira.
Ela o encarou e ele
disparou:
- E você acredita?
-
Sei lá! Esta história de Deus tem muitos paradoxos para ser verdade.
- Tipo?
- Os teólogos falam que
Deus é amor, mas como um ser que ama pôde deixar que minha vida chegasse ao
ponto que chegou?
- Por ser amor nos dá livre-arbítrio.
Como já lhe disse, tudo que você está vivendo não é nada mais, nada menos que
fruto de suas escolhas. No mais, sua vida não é tão ruim quanto você pinta, e
mesmo assim você tem o livre- arbítrio para desistir. Deus não costuma
interferir brutamente nas decisões de um ser humano. Mas...
- Mas?- questionou
curiosa.
- Acredito que às vezes
Ele não se importe em abrir o mar para mudar algo já decidido.
Lurdes sorriu
debochadamente. Ela sempre teve um temperamento prático e resoluto, com isso
rejeitava a teoria com a qual Manuel tentava explicar o inexplicável. Ela tinha
sua própria maneira de encarar a vida. Não era descrente. Acreditava que a
teoria de que o universo era fruto de uma mera explosão, banalizava demais a
perfeição, consequentemente só algo com um poder supremo seria capaz de manter
o equilíbrio da vida na terra, contudo já há algum tempo deixara de perder o
sono com estes pensamentos, talvez por acreditar não ter discernimento
suficiente para entender, ou quem sabe por pensar que se realmente existisse um
deus, ele não passava de um carrasco
desumano.
- Tá tudo bem ai? –
perguntou Manuel diante do silêncio de Lourdes.
- Não. Não tá tudo bem. Eu
estou cheia de problemas...
- Quem não os tem?
Problemas nada mais são que desafios. O que seria da vida sem desafios? Mas no
seu caso, você parece somar a todos os seus problemas a sensação de injustiça. “Eu
não merecia receber isso, eu não merecia passar por aquilo”. Enfim, quando
juntamos aos problemas a sensação de injustiça o sofrimento é certo.
Lurdes ainda digeria
aquelas palavras quando ele perguntou:
- Você não se acha injustiçada
pela vida?
Sem pensar muito ela
disparou:
- Muito.
- Tá ai! Todo seu sofrimento vem desta
raiz de amargura. Não vou afirmar que não houve injustiça na sua existência,
com certeza houve. Ninguém em sã consciência dirá que o sofrimento é justo, mas
ele existe e é real. Ele faz parte da vida. É só enfrentar esta realidade sem
se matar de sofrer.
- Se fosse tão fácil assim
muitos não teriam desistido da vida.
- Pois é. – ele murmurou.
Um silêncio obtuso se fez
por alguns minutos até Lurdes voltar a indagá-lo.
- Já que você tem solução
pra tudo, qual seria o conselho que daria para alguém que desistiu?
- Primeiro aceitar o
sofrimento como um fato natural da existência humana. Segundo, encarar a situação
de frente e acreditar que nada é pra sempre, tudo muda. Só é necessário um segundo para transformar
toda uma existência. Sei que é triste constatar que ninguém se compadece da sua
dor, até porque ela é sua e de mais ninguém. Neste momento o velho jargão “vá à
luta” é a única saída. Sua vida, sua dor, sua luta. Nada é definitivo.
- A morte é certa. –
rebateu ela.
- Quem garante? Ninguém
voltou com fotos, vídeos ou provas do que há do outro lado, mas acreditar que
quando se morre tudo se acaba é muito arriscado. O assombro pode ser muito
grande!
- Eu não acredito nesse
negócio de vida após a morte. – confessou ela.
- Não deve acreditar
mesmo.
Ela o encarou e ele
acrescentou:
- Se acreditasse não
tomaria a decisão de tirar a própria vida.
Ela riu e desdenhou:
- Tá dizendo que você
acredita naquela baboseira de queimar no fogo do inferno?
- Acredito que a vida é
uma dádiva e que ninguém tem o direito de jogar fora algo tão precioso. Se de
toda ação provem uma reação, não posso negar que um suicida tenha que arcar com
seu ato.
- Você está insinuando que
quem se mata vai direto para o inferno?
- Quem saberá responder?
Ela riu, deu de ombros e
disse sem medo de errar.
- O inferno não deve ser
pior que minha vida.
- Costumamos não temer o
desconhecido como deveríamos.
- Coisa mais idiota
acreditar que queimar eternamente bota medo em alguém.
Manuel não disse nada, mas
naquele ponto ela precisava ouvir mais daquele completo estranho.
- Se eu desistir agora o
que vou fazer?
- “Não estejais ansiosa
por coisa alguma”, diz o sábio.
- Isso não vale.
Ele riu. Ela insistiu:
- O que farei caso decida
voltar pra casa?
- Deixe o futuro ser
presente quando o futuro chegar, viva o agora. Esta sua ansiedade só vai
sabotar sua felicidade e interferir em sua capacidade de seguir adiante. Isso
será um grande empecilho à realização de seus sonhos, sejam eles exteriores ou
interiores.
- Não consigo deixar a
vida acontecer sem ter certezas absolutas.
- De onde você tirou a
ideia que existam certezas absolutas? Quando dirigiu até aqui esta manhã, você
tinha certeza que neste exato momento já estaria no mundo dos mortos,
entretanto está mais viva do que nunca.
Lourdes deu de ombros como
quem dá fim a conversa.
- Tá chegando a minha
hora. Daqui à pouco vou embora. – disparou ele.
Lourdes que já gostava da
conversa ouviu aquele aviso de partida com pesar. Mesmo confrontada em suas
decisões, aquele estranho lhe falou mais verdades que muitos daqueles que ela
tinha como amigos.
- Acha mesmo que se me
matar vou para o inferno? – tentou ela voltar ao assunto.
- Com certeza. – respondeu
convicto.
- Queimar no fogo eterno?
– perguntou.
- Não.
- Não? Mas o inferno não é
um lago de fogo ardente, onde os desgraçados queimam pela eternidade?
Ele sorriu, mas desta vez
havia ironia em seus lábios.
- Quero que pense bem e
descreva sua vida em apenas uma palavra.
Ela o encarou sem
entender.
- Vamos. Se pudesse
descrever sua vida numa única palavra, qual seria ela?
Lourdes levou alguns
segundos para responder.
- Inferno.
- Pois é. Há muitos e
muitos anos conheci um homem que me dissuadiu de cometer a mesma insanidade que
você está querendo cometer.
- Você ia se matar? –
perguntou ela interrompendo-o.
Sem responder a indagação,
voltou a seu relato.
- Lá estava eu com uma
arma apontada pra minha cabeça quando este homem se aproximou e me perguntou
por que eu estava prestes a cometer o suicídio. Respondi que minha vida era um
inferno. Ele riu e disse: Ai se renova o ciclo. Sem entender perguntei o que
ele queria dizer com aquilo. Foi ai que ele me contou uma história passada a
ele por outro homem quando ele estava prestes a se matar.
Lourdes estava tão atenta
que mal conseguia piscar.
- Todo suicida vai para o
inferno sim, mas vai para seu inferno particular. E qual seria ele? Sua vida
infernal. Pois bem, um suicida está preso num ciclo sem fim. Eterno. Por toda
eternidade vai voltar na mesma vida, sofrer as mesmas mazelas só que cada vez
um pouquinho pior; com isso em determinado tempo vai se matar e novamente
fechar um ciclo e já abrir outro. Este é o inferno eterno de um suicida. Um
suicida está predestinado a ser infeliz, caso contrario não completa o ciclo. Isso
é como uma maldição que só é quebrada caso o suicida convicto enfrente a vida e
prossiga até ser encontrado naturalmente pela morte. Entende?
- Eu não acredito nesse
negócio de reencarnação. – disparou ela.
- Quem falou em
reencarnação?
- Você.
- Não minha cara. Eu estou
descrevendo o que é o inferno para aqueles que simplesmente desistem. Quer
castigo pior que viver esta sua vidinha miserável mais vezes, só que cada uma
delas um pouco pior?
- Isso não pode ser
verdade.
- E se for? Vale a pena arriscar?
Ela ponderou alguns
segundos e confessou:
- Tenho medo de não
conseguir.
- A pior armadilha que uma
pessoa pode cair é aquela feita pelos próprios medos. Medo de que? De continuar
infeliz? Pelo que me relatou você já está acostumado a isso. – ele riu - Caso
não consiga ser feliz pelo menos você tentou. Isso já é um grande troféu. –
concluiu ele já se levantando.
- Aonde vai? – perguntou
ela contendo o ímpeto de segurá-lo a seu lado.
- Já chegou minha hora.
- Você não pode partir
agora. Enche minha cabeça de baboseiras e cai fora?
Ele gargalhou com gosto.
- O que eu faço?
- Viva! Arrisque ser
feliz. Deixe de ser esta castanheira teimosa que se recusa curvar-se à força do
vendaval. Não se deixe abater por quaisquer alterações no seu estado amoroso,
profissional ou emocional. Enterre o passado definitivamente. Adapte-se as
novas situações. Fuja da mesmice, conheça novas pessoas, as que forem boas
preserve-as ao seu lado, as que não forem tão interessantes, descarte-as. Gaste
seu dinheiro com viagens, passeios. Jogue conversa fora, brinque com seus netos
como se você fosse uma criança. Nunca subestime a alegria, ela sempre vem
embrulhada nas pequenas atitudes. Por fim faça como eu. Deixe de se ver como uma
vítima e torne-se uma sobrevivente. Siga adiante, passo a passo, lentamente
saboreando todos os gostos que a vida tem. Alguns serão doces como o mel,
outros fortes como a pimenta, muitos amargos como o fel, mas cada um tem sua
peculiaridade. Deixe o futuro para o futuro e se perca no presente. Olhe ao
redor. A vida é complicada, mas só é infinitamente maravilhosa por ser
complicada. E como disse desde o começo... Tudo está bem!
Por um segundo Lourdes se
virou para frente enquanto se apoiava na beirada da pedra a fim de se levantar.
Quando voltou o tronco para trás o homem havia desaparecido. Imediatamente
pôs-se de pé e correu até o carreador. Viu seu carro com os faróis acessos e a
porta aberta. Vasculhou a área com os olhos. O sujeito havia desaparecido no
ar.
Um medo sem propósito
invadiu-lhe a mente. Como alguém pode desaparecer assim do nada? Perguntou-se. Gritou o nome de Manuel. Não houve resposta.
Confusa voltou para beira do abismo.
Olhou
para baixo. Uma brisa gelada a fez tremer. Imaginou-se caída no fundo da grota,
seu coração descompassou.
Foi
por um triz, pensou ela.
Uma mescla de emoções
borbulhava dentro do peito, confusão e euforia inebriavam-na. Nunca havia se
sentido como naquele momento, mesmo ciente de quão frágil e limitada era, uma
felicidade tirava-lhe o fôlego. Ainda que apavorada diante da decisão de continuar
a vida, exultava por ter mais uma chance. Olhou no relógio. Já passava das onze
horas. Lembrou-se que a filha passaria em sua casa ao meio dia. Ela havia marcado
este almoço, pois queria que encontrassem logo o bilhete suicida.
Tremeu por dentro. E se
ela entrar em casa e ler o bilhete?
Correu até o carro. Pulou
no banco e girou a chave que ficara na ignição. O farol piscou e apagou. O
velho fusca começou a gemer. Os faróis arriaram a bateria. Ela estava com um
grave problema.
- Vamos meu querido. Eu
nunca te abandonei, você não vai me deixar na mão logo agora.
Girou a chave. Nada.
Com o coração disparado
vasculhou a mente tentando descobrir um plano para resolver aquele desafio.
Vou tentar fazê-lo pegar
no tranco, pensou.
Ela era exímia em ligar o
carro no tranco, só havia um único agravante. O carro estava virado para cima e
ela teria que dar o tranco de ré; e como a estradinha era muito estreita
cometer qualquer erro poderia ser fatal, visto que o acostamento era o próprio
abismo.
Relutou antes de soltar o
freio de mão. Caso algo desse errado, ela morreria e todos pensariam que havia
se suicidado.
- O meu deus. O que fui
fazer?
Pensou em ligar para filha
dizendo que precisara sair. Vasculhou a bolsa, onde estaria o celular? Nada na
bolsa, nem no porta luvas.
Ela riu.
Lembrou-se que havia
deixado sobre a mesa. Afinal pra que um defunto precisaria de um celular?
Acertou o retrovisor,
engatou ré, girou a chave pisando na embreagem. O carro deslizou morro abaixo,
súbito tirou o pé da embreagem, o carro tossiu, mas não pegou. Repetiu a
operação enquanto vigiava a estrada pelo retrovisor. Uma curva se aproximava,
ela tirou pé da embreagem, o carro chacoalhou, pegou e acelerou morro abaixo.
Foi muito rápido, ela não teve tempo pra pensar, quando viu o carro atingira o
limite da estrada. Ia despencar.
Num impulso abriu a porta
e se projetou pra fora. A porta aberta bateu em sua cabeça, e quase a nocauteou.
Quando se colocou em pé,
viu que seu amigo inseparável jazia no fundo do precipício. Com tristeza
despediu-se do amontoado de ferro retorcido e começou a correr ladeira abaixo.
A adrenalina que corria em
suas veias era tanta que fazia sua carne tremer.
Depois de quinze minutos
correndo, finalmente alcançou a rodovia.
Sem saber como chegaria a
tempo em seu apartamento continuava correndo pelo acostamento quando a buzina
de um caminhão quase a matou de susto.
Uma carreta enorme agarrou
nos freios fazendo um barulho estridente. Ela pulou no mato temendo ser
atingida.
Tal qual uma louca ela
desatou a gargalhar caída de costas no meio da relva, uma euforia por estar
viva após tantos incidentes tomou sua mente e seu corpo.
O som de uma porta batendo
a fez calar, ela se ergueu e já se apoiava para levantar quando um homem baixo
e forte esticou a mão para ajudá-la.
Ela o encarou, e segurou
nas mãos calosas.
- Você quase se mata!
- Quase mesmo. – respondeu
ela rindo da ironia da situação.
- O que faz aqui no meio
do nada? – perguntou ele ainda segurando sua mão.
Ela pensou, pensou,
lembrou-se do carro e disparou:
- Vim ver o nascer do sol
e sofri um acidente. Meu carro despencou no barranco. Estou a pé.
- Quer uma carona?
Ela olhou para enorme
carreta, depois para o sujeito que aguardava sua reposta e pensou. Que mal tem?
- Se você puder me fazer
esta gentileza... Ficaria muito agradecida.
Quando a carreta começou a
acelerar ela observou o relógio do painel. Dez para o meio dia e sem se conter
rogou em voz alta:
- Ai me deus, me ajuda!
O caminhoneiro a encarou
sem entender e perguntou:
- O que foi?
- Eu... – sem saber como
explicar apelou – Você tem um celular?
- Tenho sim.
- Poderia me emprestar?
O homem tirou o celular do
bolso da camisa e entregou a Lurdes, que sem nem ao menos agradecer começou a
digitar os números.
- Filha?
- Oi mãe, estou um pouco
atrasada. Poderíamos marcar o almoço para amanhã? – disse a filha do outro lado
da linha.
- Sim, por mim tudo bem. –
respondeu aliviada.
- Ótimo, mais tarde te
ligo.
- Ok. Até mais tarde
então.
Lurdes entregou o celular
ao caminhoneiro, agradeceu e só então relaxou.
O homem aumentou o som do
rádio e seguiu rumo à cidade tamborilando os dedos no volante. Lourdes
recostou-se no banco esticou as pernas e apreciou a paisagem... afinal as verdades
definitivas que ela tinha a seu respeito haviam se dissipado como fumaça ao
vento, agora a única coisa que lhe sobrou foi a verdade relativa daquele exato
momento. Quanto ao futuro? Ela não tinha a menor idéia do que seria.
Por agora tudo estava muito
bem.